Vou escrever com o coração, que só assim me sai o que sinto.

E o que sinto, não estará longe do que sentem os portugueses.

Enquanto tantos lutam pela vida, os deputados lutaram pela morte. Não houve sobressalto por adicionar morte, à morte. Apenas estratégia.

Não podia haver maior insensibilidade, crueza, desrespeito.

Qualquer um, a favor ou contra a Eutanásia, se arrepia com o momento escolhido para a aprovação da Lei.

O povo quis ser ouvido em referendo, mas recusaram-lhe essa possibilidade, talvez temendo o resultado – essa recusa não defendeu a Democracia.

Foram surdos à opinião das Ordens dos Médicos, Enfermeiros, Juristas, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, confissões religiosas e tantos outros — essa surdez não promoveu a Democracia.

Nunca houve urgência nesta matéria. Nunca houve clamor social a favor da Eutanásia, antes pelo contrário.

De todos os lados há uma recusa da lei. Os médicos não tomarão parte nos procedimentos previstos, porque a eutanásia não é um acto médico e porque a eutanásia é contra a medicina! Sabendo desta posição honrosa e corajosa, os deputados mantiveram a sua decisão – a arrogância promove a distância.

Só oito países no mundo legalizaram a Eutanásia.

Em muitos deles a lei revela-se dramática, cada ano mais. A rampa deslizante permite já hoje,  a morte de crianças, pessoas com demência, doentes psiquiátricos, cansaço de viver e muitas outras situações.

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Os deputados dizem que a lei é “apenas” para casos graves, blindada a derrapagens. Não é verdade! A lei abre portas a demasiadas situações, é permissiva, não se refere a casos terminais, inclui muitos outros.  É bom que se tenha consciência disto. Não podemos ser ingénuos e sabemos que não é esta a experiência dos outros países.

Sou psiquiatra. Lendo o texto da lei, verifico a ausência da participação da saúde mental. Como foi isto possível? Falta a avaliação do psiquiatra ou do psicólogo. Trata-se de uma ausência muito grave. Quem avalia a capacidade mental? A presença ou ausência de doença mental? A liberdade e a capacidade para decidir? Como é que alguém em sofrimento intolerável é livre na sua decisão? Quem diagnostica se o desejo de morrer decorre de uma depressão grave ou mascarada? Quem aborda a angústia que o sofrimento pode provocar? Quem investiga se há pressão exterior? E acima de tudo — perante o desejo de morrer de alguém — o que fazemos? Facilitamos o suicídio? Aceitamos ou questionamos o pedido? Provocamos a morte?

Estas perguntas são  legítimas,  a Lei tem de responder ou acautelar, mas  é absolutamente omissa!

O desejo de morrer em qualquer ser humano, é expressão de solidão, desamparo, incompreensão, desesperança, amargura, tantas vezes revolta e raiva. Mas é também expressão do desejo de viver de forma diferente, sabemo-lo bem.

É possível abordar e acompanhar o doente que apresenta sofrimento, de outra maneira.

Há estratégias usadas e comprovadas. É esse o trabalho da Psiquiatria e da Psicologia, agora arredadas deste processo.

Uma coisa são direitos e autonomia, outra é deixar alguém entregue a uma espiral de desejo de morrer, não acompanhado. Que tremenda solidão!

Estive na Comissão da Especialidade e aprofundei este tema. Pareceu-me — ingenuidade minha! — que os deputados tinham acolhido estas preocupações. Dois dos projectos-lei em presença na altura, propunham a avaliação por psiquiatra e isso seria o mais correcto.

Mas Isabel Moreira preferiu ignorar esta preocupação relevante.

O que a moveu?  Porque omitiu a Psiquiatria/Psicologia do texto da lei? Porque retirou aos doentes em “sofrimento intolerável” a possibilidade de serem acompanhados ou tratados?  Que ideia tenebrosa ou obsoleta tem da Psiquiatria? Não vê que essa omissão é em si mesma uma privação da liberdade do doente em sofrimento?

Não sabe que dentro do desejo de morrer, há sobretudo um mal viver que temos de perceber?

Acreditará mesmo que o pedido de morrer é feito com neutralidade, humor estável, sem angústia? O que é o sofrimento intolerável sem repercussão psicológica? Isso não existe!

Existem é pessoas com angústia de viver, que sentem que são fardos para os outros. Temos mais coisas a oferecer do que um salvo conduto para a morte.  E é nossa obrigação ética fazê-lo!

Não se trata de autonomia, direitos, liberdade, dignidade na morte. Não manipulem as palavras.

Aqueles são valores essenciais que partilhamos. Quem é contra a Eutanásia não é contra esses valores, antes pelo contrário. E quem é a favor, não tem o exclusivo da sua defesa.

Mas há um valor prévio e constitucionalmente defendido.

Tem de haver vida! O direito à vida é o primeiro, o essencial, o mais importante a preservar e a defender.

Vivemos uma catástrofe nunca vivida – a pandemia colocou-nos na angústia da sobrevivência. É isto que vivemos. Medo de sermos contagiados. Medo de contagiar. Medo de ir ao hospital. Medo de não ter lugar no hospital. Medo pela nossa família, pelos nossos idosos. Medo de perder o emprego. Medo da crise social.

Confinados. Cansados. A exaustão pandémica a marcar o quotidiano.

Os  profissionais de saúde  estão a dar tudo por tudo. É essa a missão e é isso que esperam de deles.  Salvar vidas! Nunca foi tão claro aos olhos de todos. Salvar vidas!

É um drama humano o que vivemos. Sabemos que os médicos da linha da frente, já estão a escolher quem tem mais possibilidade de viver, ou a escolher que outras doenças ficam para trás. Fazem-no com sofrimento ético. Não escondem como é terrível esse sofrimento. E todos nos arrepiamos com eles e por eles.

A missão dos médicos e de todos os profissionais de saúde, é a que vemos ser  cumprida, hoje mais do que alguma vez.

Nunca foi tão louvada, agradecida, desejada, esperada.

É neste contexto que surge a aprovação da Lei da Eutanásia. Em cima do inaceitável, o absurdo, o insensato. Que enorme insensibilidade!

Que fio condutor perseguem os deputados? Qual o sentido desta aprovação neste momento das nossas vidas? Nenhum momento seria bom… mas porquê agora?

Os deputados parecem não comungar da dificuldade dos dias que vivemos. O plano em que se colocaram é de distância perante as reais preocupações dos portugueses. Estarão demasiado longe, no seu Palácio? Quererão entender o Povo? Com tanta coisa grave a acontecer aprovam a Lei da morte a pedido?

A aprovação da Lei fica marcada pela insensatez do momento, pela falta de sensibilidade, ouso dizer até, pelo desrespeito relativo ao sofrimento que vivemos. Que momento triste da nossa democracia!

É uma lei desumana. Pretende defender a dignidade e a morte assistida, mas legaliza a morte a pedido, sem acompanhamento nem questionamento.

Quero acreditar que ainda haja alguma coisa que mude, altere, faça parar esta lei.

Para que a política não fique longe demais.