Só em março se concluíram, após a repetição da votação nos círculos da emigração, as eleições legislativas de 30 de janeiro. A legislatura segue agora, finalmente, o seu caminho normal. Não obstante, proponho um último acrescento sobre a matéria. Para tal, apenas peço ao leitor uma mísera fracção do tempo alocado durante a campanha eleitoral a temas tão caros ao interesse nacional como o de quem foi o verdadeiro culpado do bloqueio ao Orçamento de Estado ou o do posicionamento político do gato Zé Albino. E faço-o, desde já, com duas penitências: uma primeira por não aproveitar ao país o prolongar da discussão sobre umas eleições que, só por si, já se eternizaram excessivamente. E uma segunda por gastar estas palavras num exercício de reflexão talvez de pouca utilidade, visto concentrar-se em algo ao qual os nossos representantes políticos têm uma aversão visceral: reformas políticas. Designadamente, proponho-me reflectir sobre a reforma da atual Lei Eleitoral (Lei n.º 14/79), cujo anacronismo julgo ter sido ilustrado de forma perfeita nas últimas legislativas. Tal reforma, considero, deve ser pensada em (pelo menos) três quadrantes.

Em primeiro lugar, urge repensar as modalidades de votação dos círculos da emigração. O mais recente acórdão do Tribunal Constitucional ordenando a repetição da votação em diversas mesas de voto destes círculos (Acórdão 133/2022) é só mais um sintoma de um maior problema de fundo: a insuficiente intervenção do Estado em garantir a participação da comunidade emigrante na vida política do país. Esta não é uma questão de somenos. O estatuto constitucional dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro está consagrado no art. 14.º da Constituição da República Portuguesa (‘CRP’), cabendo ao Estado prover que estes exerçam plenamente todos os direitos que ‘não sejam incompatíveis com a ausência do país’. Um desses direitos é o direito de voto, forma de expressão democrática primária da visão que todos os cidadãos têm quanto à condução dos destinos do país. E essa visão, quando globalmente considerada, seria incompleta se ignorasse os interesses da comunidade emigrante. Ora, a atual regulamentação eleitoral é manifestamente deficitária na forma como acautela a expressão, pelo voto, desses interesses. É excessivamente burocrática nos procedimentos de autenticação da identidade dos eleitores, promovendo práticas como as que levaram, agora, à anulação de milhares de votos legítimos nos círculos da emigração (o supramencionado acórdão do Tribunal Constitucional confirmou a inconstitucionalidade das mesmas, dando provimento ao recurso interposto pelo Volt). São muito interessantes, nesse sentido, as ideias presentes numa moção estratégica aprovada no último congresso do LIVRE de exploração (i) do alargamento do voto antecipado em mobilidade a residentes no estrangeiro, (ii) da condução de projetos-piloto de teste da segurança do voto eletrónico não-presencial, (iii) da implementação do recenseamento automático atualizado nestes círculos, ou (iv) de novos modelos de prova da autenticidade do voto por correspondência. Permito-me ainda acrescentar a necessidade de ponderar a alteração do atual artigo 13.º, n.º 3 da Lei Eleitoral, que prevê a eleição para a Assembleia da República de apenas dois deputados por cada um dos dois círculos da emigração. Mesmo dando de barato que um número significativo de eleitores registados nestes círculos não exerce o seu direito de voto, estes continuam a eleger um número de deputados manifestamente insuficiente, tendo em conta o número de cidadãos residentes no estrangeiro que votam em cada eleição (apenas a título de exemplo, o círculo eleitoral de Viseu elege o dobro de deputados com 184.444 votantes do que os dois círculos de emigração juntos, que perfazem um total de 173.792 votantes). Sem grandes pretensões de complexidade matemática, porque não atribuir aos círculos de emigração um número de deputados mais em linha com o seu efetivo número de eleitores votantes?

Em segundo lugar, uma revisão da lei eleitoral deveria ser aproveitada para preparar um quadro seguro de adaptação do funcionamento de eleições a casos de emergência sanitária. Tal como as últimas eleições nos mostraram, é melhor prevenir do que remediar aberrantemente; isto é, com a abertura de uma hora antes do fecho das urnas onde infetados pudessem furar o isolamento e ir votar. Ora, o atual art. 20.º, n.º1 da Lei Eleitoral prevê, de forma extremamente rígida, que ‘o dia das eleições é o mesmo em todos os círculos eleitorais, devendo recair em domingo ou feriado nacional.’. Mesmo que tal princípio se mantenha, pode ser adicionada a este artigo a exceção de que, em situações de emergência sanitária, a realização de eleições se poderá realizar em dois (ou até três) dias consecutivos. O PAN apresentou, aliás, proposta semelhante em 2021. Países como a Chéquia ou os Países Baixos adotaram métodos semelhantes de extensão dos dias eleitorais perante as dificuldades logísticas criadas pela pandemia de COVID-19. Estes são exemplos que Portugal poderia seguir de forma a prevenir, de forma clara, que os eleitores se sintam dissuadidos de exercer o seu direito de voto por temerem a sua própria segurança.

Em terceiro lugar, é preciso considerar seriamente o atual esquema de representação proporcional assente no Método de Hondt. A utilização deste modelo matemático (sobejamente conhecido pelos alunos do ensino secundário de Matemática Aplicada às Ciências Sociais) no estabelecimento proporcional da composição da Assembleia da República já não assegura na atual realidade do país, o perfeito cumprimento dos princípios constitucionais do sufrágio direto (art. 10ª CRP) e da igualdade entre cidadãos (art. 13.º CRP). Segundo estes dois preceitos o voto deve ser (i) direto na medida em que a composição da Assembleia da República deve refletir da forma mais direta possível a vontade dos cidadãos expressa nas urnas; bem como (ii) igual, na medida em que o voto de cada cidadão deve concorrer de igual modo para a determinação da composição da Assembleia. Ora, tal como concebido presentemente, o atual sistema eleitoral proporcional português, através da distribuição de número de deputados por círculos eleitorais associada à aplicação do método de Hondt resulta (i) na valorização excessiva dos maiores partidos, i.e. PS e PSD, no Parlamento (estes ocupam agora, conjuntamente, 86% dos mandatos da AR!); (ii) na representação quase exclusiva da maioria dos círculos eleitorais por estes dois partidos (excetuando em Lisboa e Porto) (iii) e na possibilidade real em cada eleição legislativa de uma maioria absoluta (quase ímpar quando olhando para a maioria dos países europeus), algo que necessariamente diminui a capacidade de escrutínio parlamentar do Governo.

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Não subestimemos a influência da nossa Lei Eleitoral na composição do nosso sistema partidário e, em específico, na alternância governativa dualista entre PS e PSD a que assistimos nas últimas décadas. O cientista político Giovanni Sartori definiu o sistema eleitoral de cada país como o seu “mais específico instrumento de manipulação política”. Vários estudos subsequentes (Lijphart, A. (1994) Electoral Systems and Party Systems. A Study of Twenty-seven Democracies, 1945–1990. Oxford: Oxford University Press; ou Pappalardo, Adriano., “Electoral systems, party systems: Lijphart and beyond.” Party politics 13.6 (2007): 721-740) demonstraram como um sistema eleitoral é uma das variáveis (senão mesmo ‘a variável’) que mais influencia o equilíbrio relativo de forças políticas, especialmente em sistemas marcados pelo dualismo. Em particular, foi estudado que a presença de imposições legais (como o é em Portugal a utilização do método de Hondt) em leis eleitorais pode gerar um significativo efeito manipulador do sistema proporcional, privilegiando a representação de certas formações políticas em detrimento de outras. Ora, isto acontece em Portugal em favor dos dois partidos tradicionalmente mais votados – PS e PSD – que o método de Hondt conhecidamente privilegia (na dúvida, o leitor pode sempre verificar esta informação junto do aluno de MACS mais próximo de si). Com efeito, quando o método de Hondt – conhecido pela força que atribui aos partidos mais votados na tradução de votos em mandatos — é associado à pequena quantidade de mandatos entregues à maioria de círculos eleitorais (excetuando Porto e Lisboa), é perfeitamente natural que a maioria dos portugueses se sinta compelido, pela sua experiência, a embarcar na lógica do voto útil, votando nos dois partidos com (muito) mais probabilidade de eleger deputados pelo seu círculo. Não pode existir, de forma credível, um apelo para que se ignore esta prática do ‘voto útil’ enquanto o eleitor residente fora de Lisboa ou Porto sabe que, com toda a probabilidade, apenas um (se chegar a tanto!) dos mandatos do seu círculo eleitoral será entregue a um partido que não seja o PS ou o PSD. É quase como se (e quantas vezes não ouvimos isto em época de eleições) um voto em Lisboa ou no Porto valesse mais do que no resto do país!

O que fazer, então? Uma possível solução seria a alteração do art.º 13, n.º 2 no que à imposição da utilização do método de Hondt diz respeito. Um sistema de proporcionalidade perfeito poderia ser equacionado neste sentido (cada partido recebe a percentagem de mandatos correspondente à sua percentagem de votos por círculo eleitoral). Mais interessante ainda seria equacionar a importação para Portugal de sistemas proporcionais mistos como os da Alemanha, Escócia, País de Gales, ou Nova Zelândia. Nestes sistemas, cada eleitor recebe dois votos. Com o seu primeiro voto, os eleitores escolhem um candidato local das listas locais apresentados pelos partidos em cada distrito. Cada sub-divisão local elege diretamente como deputado o candidato local mais votado. Com o seu segundo voto, os eleitores escolhem o seu partido político favorito. Em função da percentagem de cada partido a nível nacional, um determinado número de deputados é eleito de listas nacionais apresentadas por cada partido. Este segundo voto, em particular, permite a qualquer eleitor de um país, independentemente da sua residência, influenciar a percentagem total de deputados eleitos a nível nacional. O estudo da aplicação deste sistema em Portugal foi já começado pela SEDES e Associação Democracia com Qualidade. Sem necessariamente subscrever todos os traços desta proposta, considero-a importante no sentido de equacionar um modelo em que cada eleitor tem dois votos. Não só o voto que permite a eleição de deputados de ‘confiança local’ mas, o que me parece tão ou mais importante, o segundo voto (de cariz nacional) que permite dar voz aos milhões de portugueses que, vivendo fora de Lisboa ou do Porto, passariam a ter uma verdadeira palavra a dizer na definição da força total relativa de cada partido no Parlamento. Seria nesse sentido interessante seguir a imposição do sistema alemão de que estas percentagens totais nacionais (para as quais todos os eleitores portugueses, independentemente do seu círculo eleitoral, contribuíriam) sejam mantidas na composição final da Assembleia, independentemente dos resultados ‘locais’  e através de complexos sistemas de compensação que me são impossíveis explicar nestas poucas linhas (e perderia definitivamente o leitor, se é que a referência a Hondt e proporcionalidade não o afugentou já).

Não pretendo com este artigo ser exaustivo ou subscrever todas as propostas apresentadas por outrem, mas apenas agregá-las e mostrar que é possível uma reforma profunda da atual Lei Eleitoral. No ano em que se celebram mais dias vividos em democracia do que em ditadura, surge o mote perfeito para uma refundação do nosso sistema eleitoral. É possível tornar a atual lei mais justa e igualitária, mais apta a representar a riqueza de vontades dos eleitores residentes fora das duas maiores cidades do país, e mais preparada para lidar com situações de emergência. Partidos como a Iniciativa Liberal já manifestaram a intenção de uma discussão aprofundada sobre a reforma da Lei Eleitoral. Resta-nos ver se outros partidos se juntarão, independentemente da sua inclinação ideológica, a este repto de mudança. Contrariar o efeito perverso e de constitucionalidade dúbia que o nosso sistema eleitoral tem no nosso sistema partidário depende (e o português politicamente entrincheirado revirará os olhos aqui) da busca alargada de consensos. Por uma Lei Eleitoral que funcione para todos os portugueses e que respeita o seu poder fundamental popular. Da forma mais direta e igual possível.