Quando fiz a mudança de casa e andei a arrumar papéis, descobri por mero acaso um recibo de vencimento de quando era ministro da Justiça. E constatei que em 2000 levava líquido para casa mais do que 19 anos depois levo como primeiro-ministro.” (António Costa, no “Jornal de Negócios”, 24 de agosto de 2019).

O Primeiro-Ministro António Costa, quatro anos após o seu início de funções, alertava desta forma bastante gráfica, e através da imprensa, para uma das limitações existentes na prevenção da corrupção: nas últimas décadas, o exercício de cargos públicos tornou-se ainda menos atrativo do ponto de vista remuneratório. E isso é um risco evidente para as oportunidades de corrupção. Não acredito que António Costa ou nenhum ministro atual seja vulnerável a isso. Mas isto é uma matéria de fé. E esta circunstância deveria ser prevenida de forma estrutural.

Do mesmo modo, saberão os eleitores – e os jornalistas – que um diretor-geral na Administração Pública, após um concurso de recrutamento que pode demorar anos a estar concluído, e que pode vir a chefiar milhares de funcionários e gerir milhões de euros de orçamento público, recebe menos de 2000 euros líquidos, acrescidos de despesas de representação, tributadas, de poucas centenas de euros, com diversas regras de incompatibilidades e de fiscalização financeira do Tribunal Constitucional, do Tribunal de Contas e da Procuradoria-Geral da República, assertivas e reais?

Num país que parece dispensar a reflexão séria sobre o Estado e a Administração, que é um país composto por um grupo, infelizmente, demasiado alargado de novos proletários precarizados e vergados e, no extremo oposto, por um grupo elitizado de autoiludidos, por convicção ou por conveniência ou conforto, novos e velhos ricos, para quem “o Estado” é demasiadas vezes, in verba, um peso dispensável, sempre, sempre, sempre, exceto na altura de atribuir isenções, subvenções ou celebrar contratos com eles próprios ou com as suas entidades sociais ou patronais, este é um tema que deveria ser objeto de reflexão.

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Tal como o deveria ser a necessidade de limitar o exercício de funções no tempo.

Neste momento, um dirigente máximo dos serviços da Administração Pública está limitado, e bem, a um máximo de 10 anos de desempenho de funções sequenciais no mesmo cargo (deveria, aliás, ser bem menos). Mas, para toda a máquina da administração decisória abaixo deles, que na prática é quem lida com a decisão e a contratação pública concreta e com a preparação da decisão de contratar, essa limitação prática não existe. Ora, a limitação de tempo no exercício dos cargos é um dos princípios republicanos históricos mais prudentes e bem intencionados que conhecemos. E porque dispensa, na prática, a Administração portuguesa esse princípio?

A resposta é relativamente simples: porque é confortável para todos e porque pagar mil e poucos euros a um dirigente intermédio, em regra sem grande formação ou ambição e sem grande alternativa, ajuda a manter a despesa pública controlada e a sua “experiência acumulada” ajuda a um status quo que, na maior parte dos casos, não causa escândalo (“escândalo da república, no sentido tomista, já agora…) nem traz novidade. Ora, como já se epigrafava num velho brocardo do século XVIII, “as novidades são perigosas”… E, na verdade, fazer novo (ou fazer melhor, a parte mais difícil), dá trabalho, exige pessoas disponíveis para tal – a assunção de riscos e de responsabilidades, incluindo a possibilidade de errar – e por vezes requer algum investimento, mesmo que depois seja compensado globalmente, até do ponto de vista financeiro. Quer-se “escândalo”, quer-se “novidade” (acho que se chama a isto agora, na nossa novilíngua, “inovação”….), mas…

Outra dimensão desconfortável do funcionamento do Estado entre nós prende-se com a injustificável disparidade de critérios e de regras entre o Estado “central” e as autarquias, o que só pode favorecer, para além de uma inaceitável desigualdade, qualquer eventual corrupção – ou seja, uma distribuição conveniente de verbas públicas de modo a ser “benéfica” para todos os envolvidos, destruindo a livre concorrência e a probidade e justiça no uso de dinheiro público.

A Administração local, municípios e freguesias, vive, as que o quiserem, numa espécie de “Olimpo” da contratação e do investimento público em comparação com a Administração Central. Tudo podem e tudo fazem, passe a hipérbole. Chama-se autonomia do poder local. Um serviço da Administração Central do Estado precisa de uma assinatura expressa do Ministro das Finanças para poder pagar, em diversos casos até o que o próprio Estado se comprometeu a pagar há muitos anos ou resulta da lei, seja 200 euros, sejam 200 mil. Uma junta de freguesia contrata serviços, pessoas, palhaços ou alcatrão em clima de facilidade e de autonomia. É assim. Uma ode à democracia popular de base.

Daí que, de uma rua para a sua contígua, de uma freguesia para a sua contígua, nós, sem o sabermos claramente, somos já outros cidadãos, de primeira, de segunda ou de terceira, em diretos e deveres. A suposta regionalização já existe, na sua pior configuração. Numa rua, levam-me cabazes de comida à porta. Na rua ao lado, posso esperar há 10 anos por me ser atribuído um médico de família no centro de saúde e não tenho sequer arruamentos onde andar em cadeira de rodas ou com um carrinho de bebé (já agora, que país é este, onde andar de bicicleta é uma prioridade pública que suplanta poder circular numa cadeira de rodas ou com um carrinho de bebé em segurança, num dos países mais envelhecidos e com menor natalidade da Europa?).

Nada disto tem, necessariamente, que ver com partidos e opções partidárias. Não creio que seja efetivamente responsabilidade do partido x ou do partido y. A mais recente estratégia nacional de combate à corrupção é seguramente positiva. Para usar uma expressão conhecida, quem pode dizer mal de “motherhood and apple pie”? Mas limitar a corrupção – que, para além de um dever público e de um crime, é uma realidade que tem muito que ver com quem somos, ou seja, nada que um Estado possa ou deva decretar por lei – passa também por mudar regras e assumir decisões muito difíceis. Ou seja, passa por políticas transversais, muito para além do universo circunscrito da justiça e da repressão.

Não sou daqueles que acha que a corrupção está enraizada nas estruturas públicas nacionais. Já fui aliciado para coisas estranhas e não dei seguimento a essas propostas. Estou neste momento no exercício de um cargo público e, a qualquer momento, posso deixar de estar, sem rebuço e sem drama. Sei como pagar as minhas contas, com o rendimento do meu trabalho, sem precisar de esquemas ínvios. Provavelmente, sou um privilegiado, infelizmente. Aprendi, em novo, que o dinheiro não traz felicidade – e a “felicidade”, ela própria, aqui entre nós, também é sobrevalorizada, desde logo na sua dimensão egotista e de confronto provável, mais ou menos explícito, com os demais à nossa volta, que afinal somos todos nós e que se reflete essencialmente sobre os mais fracos e, especialmente, sobre aqueles que não sabem sequer que o são.

Mas sei também que é preciso pagar adequadamente a quem trabalha; demonstrar, com factos e consequências, que o serviço público é um privilégio e uma oportunidade quase única de ser decente e contribuir para o bem comum por quem o exerce; e que se deveria poder circular entre serviço público e trabalho privado de uma forma que não existe hoje, uma vez que, na prática, tal é quase impossível.

Digo – demasiadas – algumas vezes a colegas que porventura se sentem incompreendidos e injustiçados, na minha perspetiva sem razão para tal, para abandonarem o seu emprego seguro e garantido no Estado e irem abrir um “snack bar em Rio de Mouro” e fazerem-se à vida… Nenhum deles o fez, felizmente, porque eu não tenho, de facto, competências comprovadas de aconselhamento seguro de investimento em hotelaria e acho, aliás, que isso é evidente para eles. Aqui, verdade seja dita, sigo um conselho de um anterior membro deste Governo, que, perante um anterior diretor-geral que afinal só sabia gerir um serviço público quando havia muito dinheiro, muitos recursos e poucas dificuldades de seleção e prioridades, o aconselhou a suspender a sua vida tranquila e habitual de magistrado (mas daqueles magistrados que ao longo da vida preferiu sempre comissões de serviço do que trabalhar num tribunal, essa coisa aborrecida e trabalhosa…) e a “abrir a sua banquinha”, já que achava que tudo estava mal e tudo e todos eram péssimos… Claro que não o fez. E hoje deve estar a gozar a sua tranquila e merecida reforma.

O Estado Novo criou um paradigma ideal de funcionário (em sentido amplo, seja ele funcionário da Administração, magistrado, professor…) – apático, funcional, responsivo na medida da instrução recebida, medroso, quando não delator. Ainda conheço, e do alto dos meus 43 anos – atenção! -, pessoas que foram expulsas da função pública antes do 25 de abril pelas suas convicções políticas – ou pelas de outros. E outros que foram admitidos por serem filhos do senhor y ou do senhor x, sem critério e sem crivo, por melhores ou piores que fossem ou sejam.

Quarenta anos de democracia ainda não conseguiram alterar aquele paradigma de forma decisiva. Melhores tempos virão, seguramente, até porque há hoje pessoas demasiado boas na Administração para aceitarem de ânimo leve este karma histórico, honra lhes seja feita – e trabalho com alguns deles todos os dias, com prazer, e com eles aprendo diariamente.

Servir os demais no serviço público não pode ser apenas um privilégio de filhos família confortados ou uma solução de recurso e, simultaneamente, redentora para alguns dos excluídos do salvífico “mercado”. Precisamos não necessariamente de mais – só de um pouco diferente.