Há tempos fomos surpreendidos com uma notícia que falava de uma decisão considerada “histórica”, por ter sido a primeira em que se tornou conhecido que a um estafeta de uma plataforma digital, mais concretamente a Uber Eats, teria sido reconhecida judicialmente a existência de um contrato de trabalho.

Imediatamente a seguir a essa notícia ter sido veiculada, começaram a surgir outras dando conta de que a Uber Eats nunca havia tomado conhecimento do processo em causa, tendo sido citada numa morada que pertence à Glovo.

Independentemente de questões formais e processuais, sobre as quais não me compete pronunciar, até porque, tanto quanto é dado saber, o processo não está ainda findo, as questões que se podem e devem colocar são:

Será esta efetivamente uma decisão histórica se na sua base está o silêncio da alegada entidade empregadora?

Será que caso a Uber Eats se tivesse pronunciado no âmbito do processo judicial, a decisão teria sido a mesma? Como deverão compreender, a resposta a esta questão não pode ser nem afirmativa, nem negativa. Não sabemos.

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De qualquer forma, importa atentar no que esteve em causa no caso concreto.

Segundo foi veiculado, o Tribunal do Trabalho de Lisboa deu como provados cinco indícios da existência de contrato de trabalho, a saber o facto de a plataforma (i) fixar unilateralmente o valor dos montantes a pagar ao estafeta, (ii) controlar e supervisionar a prestação da atividade em tempo real, (iii) restringir a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, (iv) exercer o poder de exclusão através de desativação da conta e (v) determinar a forma como a atividade é prestada.

Ora, a Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que entrou em vigor no dia 1 de maio de 2023, veio introduzir o novo artigo 12.º-A ao Código do Trabalho, estabelecendo as regras para a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

Efetivamente presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital, se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no Código do Trabalho que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.

Contudo, esta é uma presunção ilidível, o que significa que a plataforma digital pode, nomeadamente em sede judicial, ilidir essa presunção, fazendo prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

E, portanto, mais uma vez, cumpre suscitar a questão: o Tribunal do Trabalho de Lisboa teria tomado a mesma decisão caso a plataforma digital tivesse oferecido a sua defesa, nomeadamente no sentido de ilidir aquela presunção?

Podemos considerar como “histórica” uma decisão que assumiu a existência de um contrato de trabalho com base numa presunção ilidível e que poderia ter tido um resultado diametralmente oposto caso a Uber Eats tivesse apresentado defesa?

Com o devido respeito, os marcos históricos devem ser considerados como tal noutras situações, situações em que efetivamente todas as partes envolvidas tenham tido oportunidade de se pronunciar e de defender a sua posição. Condenar à revelia é, a nosso ver, uma condenação que não pode ter o mesmo alcance. É verdade que não deixa de ser uma condenação, mas talvez apenas o tenha sido porque a outra parte não se pronunciou. Mas, e se se tivesse pronunciado?

A grande questão em discussão é a de saber se os trabalhadores das plataformas digitais são trabalhadores por conta de outrem ou trabalhadores por conta própria. Esta questão não é recente e tem trazido ao conhecimento de todos diversas decisões tomadas pelos tribunais, não só em Portugal. A matéria tem tido tratamentos diferentes nas diversas geografias e inclusivamente nos Estados-Membros da União Europeia.

Na verdade, cada Estado-Membro tem criado legislação nacional específica no sentido de procurar resolver a questão; mas com abordagens diferentes, o que torna a sua análise ainda mais difícil.

Existe, contudo, uma proposta de diretiva da Comissão Europeia, de final de 2021, para regular o trabalho através de plataformas digitais, no sentido de que as pessoas que trabalham nas plataformas possam ter um estatuto profissional correto, com base na sua relação efetiva com a plataforma, e que tenham acesso aos direitos laborais e de proteção social aplicáveis, se for o caso, a qual, depois de aprovada e transposta, será, a nosso ver, muito útil, atenta a pretendida uniformização no tratamento da matéria.

No entanto, parece-nos que o processo não será rápido e até lá devemos viver com a realidade que conhecemos e que, salvo melhor opinião, não andará assim tão longe da proposta de diretiva, mormente porquanto, também no âmbito desta, ter-se-á sempre de ter verificados alguns elementos para se presumir que estamos perante um contrato de trabalho e essa presunção terá de ser naturalmente ilidível.

Nada de novo considerando que relativamente a qualquer situação de desempenho de uma atividade profissional uma determinada pessoa poderá querer ver reconhecida a sua relação como uma relação de trabalho e para isso também existe uma presunção, critérios que devem estar preenchidos e a possibilidade de essa presunção ser ilidida pela alegada entidade empregadora.

Concluindo, a questão de fundo não é nova, o que é novo é o “boom” de plataformas digitais e de pessoas a quererem desenvolver atividade para essas plataformas.

Mas convém não esquecer que também algumas dessas pessoas não querem essa solução, pretendem manter preservada a sua flexibilidade e isso, muitas vezes, não se coaduna com a existência de um contrato de trabalho.

E, com isso, é preciso analisar-se, com o devido cuidado, as ações judiciais que têm na sua base uma inspeção da Autoridade para as Condições de Trabalho, no âmbito da qual é preciso atender àquela que é a real vontade do trabalhador.

E, com isto, ficamos a aguardar uma verdadeira decisão histórica!