Há oito dias, numa daquelas erupções emotivas em que é pródigo, o prof. Marcelo subiu a um palco e declarou: “Conseguimos! Portugal tornou-se no país chave da revolução tecnológica!”. O palco era o da Web Summit, uma cerimónia de carácter religioso que decorreu para os lados de Moscavide e na qual ninguém, em nenhum canto do mundo civilizado e do outro, reparou. O extraordinário evento, que não foi noticiado por qualquer “media” a leste de Badajoz e a oeste das Berlengas, serviu para um guru carismático vender bilhetes e camisolas, para o Estado “investir” milhões e para governantes sem vergonha recolherem o aplauso de fiéis em transe. E só.
Portugal talvez seja razoável em matéria de rolhas e chinelos de dedo, mas anda tão distante da revolução tecnológica quanto perto dos resultados de uma lobotomia desastrosa. A coisa não teria sido pior se o prof. Marcelo tivesse visitado o IV Torneio de Columbofilia de Famalicão e decretado que estamos na vanguarda da conquista espacial. Ao contrário do que garante o prof. Marcelo, Portugal não tem os melhores jogadores do mundo, os melhores bombeiros do mundo, os melhores emigrantes do mundo e nem sequer os melhores portugueses do mundo. Em compensação, tem, provavelmente, o presidente mais inverosímil do hemisfério norte. A fechar a Web Summit, o prof. Marcelo, aplaudido de pé, jurou que “não temos medo do futuro, somos imparáveis. Ninguém nos vai parar.” E a seguir chamou os repórteres para, acompanhado do sem-abrigo que fez a descoberta, espreitar o recipiente do lixo onde se encontrou um bebé recém-nascido.
Muitos julgaram perceber um contraste simbólico entre o país que finge ser moderno e o país em que uma mãe deita fora o próprio filho. Julgaram mal. A senhora em causa é estrangeira, crimes terríveis acontecem em toda a parte, e a loucura individual é uma permanência em todos os tempos. Por sorte, a loucura colectiva é menos frequente. Por azar, é uma constante do buraco a que descemos: num ápice, meio mundo decidiu que a responsabilidade pelo bebé atirado ao lixo não é da mãe que tentou o infanticídio, e sim da sociedade, da crise de valores, da crise da bolsa, do capitalismo, nossa, minha e sua. No dia em que eu resolver abalroar com um autocarro o comentador Y por proferir palermices, espero que seja a sociedade a responder em tribunal. A miséria mental da pátria, afastada da inovação tecnológica e próxima da insuficiência cognitiva severa, não se revela no acto isolado de uma senhora desesperada, maldosa ou demente. A chatice é a demência geral que “justifica” e tolera o acto.
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