Não há à primeira vista uma relação entre a expressão portuguesa “Ah, mas são verdes” e o chamado Sermão da Montanha, descrito longamente em três capítulos do Evangelho de São Mateus. A expressão parafraseia a tradução portuguesa do dito de uma fábula. Confrontada com a dificuldade de chegar a umas uvas em “roxos, maduros cachos” uma raposa observa sucintamente que as uvas “Estão verdes, não prestam / Só os cães as podem tragar.” O Sermão, muito mais longo, descreve de vários modos a posição daqueles que não têm ambições de chegar às uvas; e promete genericamente que lá haverão de chegar.

Os tempos correm no sentido das nossas inclinações vulpinas. É genericamente considerado sinal de sabedoria descrever de um modo desfavorável aquilo que é insensível aos nossos favores: não apenas as uvas demasiado altas, mas as pessoas que não resistem aos nossos encantos, as portas que nos entalam os dedos, e de um modo geral quem não reconhece os nossos talentos. Mas o sinal infalível de pertença à tradição da raposa consiste em imaginar que a saída para infortúnios físicos e sentimentais é verbal; e que é sinal de maturidade resolvermos os nossos problemas por meios verbais. Com as palavras certas as uvas regridem na maturação, e o mundo faz justiça aos nossos méritos.

No Sermão da Montanha não há ocasião para grandes soluções verbais. No preceito segundo o qual a melhor maneira de não se ser julgado é não julgar recomenda-se no fundo que não se diga grande coisa em causa própria; e em muitas das comparações que se fazem exaltam-se as pessoas, animais ou coisas desprovidas de capacidades verbais: as aves do céu, os lírios do campo e os pobres de espírito. Nenhum parece ter meios verbais para tornar uma situação desagradável numa situação suportável. A solução para as situações difíceis nunca parece ser verbal: consiste pelo contrário em ceder partes do nosso vestuário a desconhecidos que o queiram roubar, e de um modo geral em não nos preocuparmos com o futuro. Naturalmente o Evangelista acha que há razões sérias para se proceder assim, nomeadamente o futuro depender pouco de nós.

O contraste entre a fábula e o sermão é o contraste entre duas posições filosóficas clássicas. À posição da raposa chama-se normalmente idealismo. O idealismo consiste em imaginar que o mundo se segue da ordem das nossas ideias; e que portanto se mudarmos de ideias as coisas e as pessoas, e com certeza as uvas, mudam de aspecto. À posição do sermonista chama-se normalmente realismo: nenhuma redescrição engenhosa da nossa parte mudará as coisas. A mesma chuva, diz ele placidamente, molha justos e injustos: quem achamos que somos é só quem achamos que somos; e não nos torna imunes aos elementos. A nossa experiência comum é que o realismo robusto de São Mateus parece verdadeiro e sensato, mas que o idealismo da raposa oferece consolações mais imediatas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR