Em Portugal, cerca de 200 mil pessoas vivem com demência, número esse que daqui a 30 anos, de acordo com as estatísticas, poderá triplicar. É uma dura realidade, envolta em múltiplos desafios, quer para os cuidadores (formais e informais) quer para a própria pessoa com demência.

A Demência não é um bicho papão, mas é um enorme desafio. Ante um diagnóstico de demência, que por si só é assustador, estamos perante um conjunto de perdas, de processos de adaptação e de consequentes processos de luto. O grande problema a nível psicológico de uma perturbação neurocognitiva é a exaustão psicológica, emocional e cognitiva que esta tem em todos os seus intervenientes.

Lembro-me do olhar de um utente que me confidenciou que o dia mais triste da vida dele teria sido o dia em que lhe foi comunicado o seu diagnóstico. Desde logo, começou a pensar que o que de mais precioso tinha, poder-se-ia perder em meses ou em anos – a memória, uma vez que a memória é o que nos mantém atores na nossa própria história, onde estão guardadas as pessoas que amamos, mantém as nossas relações sociais, a nossa personalidade, os conhecimentos que adquirimos ao longo de todo a nossa vida, as viagens que fizemos e tudo aquilo que para nós teve impacto. De referir que é redutor pensar na demência como a simples perda de memória. Aliás, há formas de demência em que a memória é pouco afetada.

Mais do que uma capacidade cognitiva, a memória é a nossa história. Com este diagnóstico vem associada sintomatologia ansiosa (“o que vai ser de mim?”, “quanto tempo tenho até me esquecer de quem sou e de quem amo?”, “que necessidades irei ter?”, “serei um fardo na vida de alguém?”) e sintomatologia depressiva. Para os cuidadores, numa fase inicial, estas questões também ocorrem (“será que irei ter capacidade para cuidar?”, “será que vou conseguir?”, “como vai ser quando não me reconhecer?”).

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Numa fase mais avançada, as questões relacionadas com a sobrecarga física e psicológica, bem como a exaustão a ela associadas, tornam-se veementes, assim como questões relacionadas com os afetos. Por exemplo, muitas vezes, os cuidadores vão confidenciado que não reconhecem a pessoa de quem cuidam “Onde está a minha mãe?”, “Quem é esta pessoa que agora se mostra agressiva e com raiva?”, “De quem é este olhar que tantas vezes parece vazio?”. A mensagem que pretendo passar é que tudo isto é normal, atendendo ao processo de doença.

Contudo, apesar do muito que a demência retira a quem com ela vive, poderá ensinar-nos muito… A questão que se coloca é o quê? Podemos percecionar a trajetória desta doença de múltiplas formas. Eu escolho a realista – a que apresenta variadíssimos desafios, mas aquela em que podemos, de facto, retirar alguma aprendizagem. Claro que é difícil pensar em pontos positivos associados à demência e cada caso é um caso.

Remetendo-me para a perspetiva do cuidado, uma das tarefas mais difíceis é a contínua manutenção da dignidade da pessoa que vive com demência uma vez que, numa fase mais avançada, a pessoa com demência terá maior dificuldade em tomar as suas próprias decisões, recordar-se delas, em cuidar de si próprio e em conseguir apresentar um raciocínio coerente, tornando-se os designados momentos lúcidos progressivamente mais escassos. É também uma aprendizagem estar disponível para prestar este tipo de cuidado, que não tem necessariamente a ver com a simples manutenção das atividades de vida diárias, mas sim com a proteção de quem amamos e que precisa.

Depois, existe um outro desafio, que é continuar a ver estas pessoas como um ser humano ativo – no sentido em que, como as dificuldades aumentam, podendo mesmo chegar ao ponto de precisarem de apoio total, como é que podemos enquanto cuidadores continuar a tornar a pessoa ativa? Eu diria que o principal seria questionar a pessoa com perguntas simples, para perceber o que pretende, de que precisa e como a podemos ajudar. Quando já não for possível, resta-nos a atenção, a empatia, a procura do bem-estar holístico e da promoção da qualidade de vida. É uma tarefa valente, de grande mestria, de grande mérito, de coragem, cuidar do outro, contribuir para o seu bem-estar, observá-lo com atenção, procurar outras formas de demonstrar o principal – o amor. A pessoa pode já não saber mostrar o afeto que tem por nós do modo como outrora fazia, mas haverá sempre forma de percebermos que aquela pessoa é ainda a nossa pessoa. Existem diferentes formas de expressar amor, seja com palavras afetuosas, com lembranças a cada dia, seja com manifestações físicas ou até mesmo com o sentido de humor e um sorriso aberto, com um olhar.

É necessário falar-se de demência, combater mitos, combater estigmas. É necessário informar a população sobre o que se passa e nunca esconder a pessoa que vive com demência, o que acontece muitas vezes, por medo de comportamentos socialmente tidos como desadequados, por a pessoa aparentemente estar diferente, por medo de como a sociedade irá reagir.

É preciso valorizar os nossos cuidadores (mais do que lhes oferecer apenas um subsídio, que em nada substitui o emprego que, muitas vezes, é perdido), proporcionar apoio psicológico, providenciar o seu descanso e oferecer respostas sociais que ajudem, de facto, os cuidadores. E é ainda mais preciso que os próprios cuidadores se valorizem enquanto pessoa, valorizem o seu papel e ter consciência que cada desafio, cada barreira que aparece em cada dia serão da melhor forma enfrentados.