Marcelo Rebelo de Sousa garantiu em outubro que não estava “maluco” e que — ao primeiro sinal, detetado pelo próprio ou por um especialista — ligaria de imediato ao jornal Tal&Qual a avisar que estava “chalupa”. Excluindo a habitual loucura política, de diatribes que fariam do príncipe de Maquiavel um menino de coro, é bastante claro que o Presidente não está maluco. Até porque Marcelo sofre daquilo a que a comitiva de jornalistas na campanha presidencial de 2016 chamou de fator Gabriela, na letra de Dorival Caymmi: “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim…”. Marcelo é quem sempre foi.

O arrojo do Presidente em privado — seja em audiências com partidos, em conversas com jornalistas ou mesmo em clubes de pensadores — contrasta com um Marcelo medroso que faz críticas nas entrelinhas, ataca governos de forma velada e apresenta cenários para fugir a revelar de uma forma direta o que realmente pensa. Além de falar muito e muitas vezes para que nada do que diga seja solene, sacralizado ou, no limite, levado muito a sério. Há nisso uma falta de coragem política que já se tornou uma imagem de marca.

Na tomada de posse do atual Governo, Marcelo Rebelo de Sousa deu um conselho sobre finanças a Luís Montenegro que podia aplicar a si próprio na maneira como se relaciona com o passado colonial: “Onde não temos problemas, não os devemos criar.” Portugal vive atualmente um momento de bom relacionamento com as ex-colónias, com respeito mútuo e com uma contínua produção cultural sobre a história colonial que se vai aproximando, a cada ano que passa, mais daquela que parece ter sido a realidade vivida nas colónias e menos uma glorificação do antigo império.

O Presidente da República estava num jantar com jornalistas estrangeiros e decidiu tirar do bolso um assunto sério com uma chocante leveza. Disse Marcelo Rebelo de Sousa, citado pela Reuters, o seguinte sobre o passado colonial: “Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis ​​não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”. Não concretizou e isso torna a declaração ainda mais irresponsável.

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Comecemos pela primeira frase: “Há ações que não foram punidas e os responsáveis ​​não foram presos?” Não se percebe se Marcelo quer ser o Baltasar Garzón português e ir atrás dos responsáveis por massacres de Wiriyamu ou Inhaminga com comissões para descobrir antigos combatentes — poucos estarão vivos e nenhum deles terá menos de 70 anos — e começar a investigar o grau de envolvimento de cada um. Ou, por outro lado, defende apenas uma compensação financeira aos familiares e sobreviventes desses massacres? O Presidente devia esclarecer do que está a falar.

A segunda pergunta de Marcelo é: “Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos?” Marcelo Rebelo de Sousa devia esclarecer a que bens se refere. O antigo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, insuspeito de ser anti-woke (e que até começou a fazer um inventário desse património), defendia uma discussão “séria e profunda” e que o tema não devia “ser tratado de forma polémica como um debate polarizado, alimentando uma guerra cultural artificial.” Ora, o Presidente da República fez precisamente o contrário.

Há um meme no Brasil, mais popular (e viral) que a própria história, que é uma reivindicação do povo brasileiro a Portugal: “Devolve nosso ouro”. Quando há casos de xenofobia contra brasileiros em Portugal, o meme vira assunto sério. Em novembro, o então ministro da Justiça de Lula da Silva, Flávio Dino, reagiu assim a um ataque xenófobo contra uma brasileira em Portugal: “Concordo até que [os portugueses] repatriem todos os imigrantes [brasileiros] que lá estão, devolvendo junto o ouro de Ouro Preto e aí fica tudo certo, a gente fica quite.”

É fácil acender o rastilho nesta matéria. Já depois das declarações de Marcelo, pelo menos duas governantes falaram do assunto. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, aproveitou para colocar pressão no Estado português: “Essa declaração precisa vir seguida de ações concretas como o próprio Presidente parece estar ali se comprometendo a fazer.”

Também a ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sonia Guajajara, disse que o Governo Lula está “aberto ao diálogo e a contribuição na construção das ações, medidas e planos de valorização e reparação que possam ser executados por Portugal”. Pediu ainda que “sejam implementadas políticas sérias contra racismo e xenofobia que muitos brasileiros ainda sofrem em terras portuguesas”. Marcelo pode estar a contribuir para o início de uma guerra cultural em várias frentes. Além de se estar a imiscuir numa competência que é do Governo.

É legítimo que o chefe de Estado considere que Portugal deve ter como grande desígnio nacional fazer a reparação histórica do passado colonial. Mas, se for isso, devia assumi-lo frontalmente. O Presidente da República podia até tê-lo feito no discurso da sessão comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril (como o fez de forma equilibrada e magistral na sessão de 2021), mas quis fazê-lo à Marcelo: numa sala com jornalistas estrangeiros, no meio de declarações meio em on, meio em off; Isso remete para o tal lado medroso de um Presidente que não diz o que pensa, mas diz a pensar no que os outros vão pensar.

A 27 de Abril, já forçado pela divulgação de um áudio sobre o tema, Marcelo falou aos jornalistas para defender que o assunto não deve ser colocado “debaixo do tapete”. E até que Portugal tem a “obrigação de pilotar, de liderar este processo” sob pena de lhe “acontecer o que aconteceu a outros países que, tenho sido potências coloniais, perderam a capacidade de diálogo e entendimento com as ex-colónias e estão a ser convidados a sair, a bem ou a mal, dos países onde ainda têm alguma presença”. Voltou a cometer dois erros aqui: o primeiro é o paternalismo de liderar um processo que as próprias vítimas não quiseram suscitar; o segundo é acenar com um fantasma de corte de relações de que não há nenhum sinal evidente, apesar de tensões conjunturais.

Podem descansar, porém, os que estão preocupados com uma wokização do Presidente. Wokismo e Marcelo é uma antítese. E o Presidente provou-o na mesma conversa em que defendeu a reparação. Disse que o antigo primeiro-ministro, António Costa, era lento por ser “oriental” e, numa tirada de centralista cascalense, acrescentou que o atual primeiro-ministro era do “país profundo” e urbano-rural por ser de Espinho. Não há nada menos woke que as reflexões de um chefe de Estado que faz reparos sobre um decote de uma jovem ou exerce gordofobia com uma trabalhadora que se sentava entre os seus pares.

Marcelo é assim, cresceu assim e vai ser sempre assim. Não é chalupa, pois sabe muito bem o que diz. Não é woke, porque tem pouca sensibilidade para o efeito que a sua crítica tem no outro. Foi reeleito há pouco mais de três anos com 60,70% dos votos dos portugueses e está num cargo de onde só pode sair por vontade própria. Ou se estivesse maluco. O que, claramente, não está. Resta ter uma paciência oriental.