É o fim da manhã. Estou no Hospital de Dia de Oncologia no Hospital de Santa Maria. As cadeiras disponíveis estão ocupadas. Agora apenas metade delas. Há quem, como eu, espere há mais de duas horas. A televisão ligada num programa da manhã não tem som – um privilégio.

Quem chega tenta perceber a opção certa na máquina automática de senhas: consultas, tratamentos, marcações e saída de consulta. Parece simples. E é simples. Para quem sabe ler, para quem vê bem, para quem se habituou às interacções sem pessoas. Para quem percebe a relação entre carregar no botão, retirar senha, ver o número no ecrã, ser chamado. E quem vê mal? Quem tem perdas cognitivas ligeiras? Quem tem problemas de mobilidade? E para quem, como assisti, não ouve e quer explicar que é surda?

No gabinete da recepção, por detrás de vidros grossos, estão duas administrativas a quem uma utente – infeliz linguagem burocrática para definir quem recorre aos serviços – explica em vão que o hospital alterou a data das sessões de tratamento sem que ajustasse o pedido de transporte previamente assegurado. Por isso, tinha pago sessenta euros. Sai uma voz do guiché:  “Isso não é connosco. Tinha de ter pedido antes”. A mulher diz ter confirmado por telefone. “Para onde ligou? Para o serviço central? Ah pois, mas tinha de ter ligado para aqui”. “Liguei para aqui várias vezes mas não atenderam o telefone”, responde a mulher. “Não podemos atender todas as chamadas, estamos a trabalhar”.

Uma  senhora, perto dos oitenta anos, pede ajuda para perceber onde é a sua consulta. Está confusa, recebeu um telefonema, não sabe sequer a que consulta tem de ir, já andou por outros pisos do hospital. Os papéis, numa confusão de prescrições actuais e vencidas, misturam-se no saco de plástico. Nota-se a ansiedade, anda às voltas, sem saber bem para quê. Tropeça e cai entre uma fila de cadeiras e o balcão da recepção. A reacção que se ouve é de quem está na sala – do guiché não vem ninguém.  É a filha de uma doente que a levanta e a senta numa cadeira. A doença cria um estado de vulnerabilidade que condiciona o funcionamento. A doença aguda assusta, a doença crónica desgasta.

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A 29 de Julho de 1978, António Arnaut assinava um decreto que garantia o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde. Um ano mais tarde, no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo foi criado, com base no “decreto Arnaut”, o Serviço Nacional de Saúde (SNS),  que consolidou o direito à protecção da saúde para todos os cidadãos, qualquer que fosse a sua condição económica e social. Alguma protecção, a que temos, é melhor que nenhuma protecção. Mas há que conferir ao SNS a dignidade da sua concepção. Não deveríamos ter uma saúde para quem a pode pagar e uma saúde para quem não pode pagar.

Não só faz falta à política um António Arnaut, como faz falta à política pensamento e decisão: na eminência da queda do governo a que pertencia, António Arnaut fechou-se no seu gabinete e escreveu um despacho. Assinou-o e fê-lo publicar, em segredo, em poucos dias. O Governo caiu, como ele previra, mas o SNS teve de ser levantado.

Passaram quarenta e dois anos, é preciso reformular e requalificar o SNS. É  preciso tratá-lo  como o bem comum que é.