O caso de Tancos é o exemplo mais recente dos problemas que ainda temos de enfrentar, como resultado da história peculiar do Ministério da Defesa em Portugal, e de uma difícil e demorada saída de dois regimes nascidos sob tutela militar para um regime normal de supremacia do poder político civil sobre as Forças Armadas. O fim adiado da Polícia Judiciária Militar (PJM) é o resultado da tendência para fazer reformas pela metade, que ficam postas na gaveta durante décadas, por receio de reações corporativas. Acabou-se com o sistema de justiça militar, mas manteve-se a PJM. Outro exemplo desta mesma tendência é a história da criação do próprio Ministério da Defesa Nacional, que tutela a PJM.

De 1950 a 1982, o ministro da Defesa foi um ministro… sem ministério! Por vezes diz-se, erradamente, que o Ministério da Defesa Nacional foi criado em 1951. Na verdade, o que nessa data passou a existir, em Portugal, foi um ministro da Defesa. Mesmo quando, a partir de 1974, passou a existir um Ministério da Defesa no papel, pouco mais era do que uma secretaria. Nessa data, o ministro da Defesa perdeu até poder face às chefias militares, que, como resultado do 25 de Abril de 1974, passaram a funcionar em quase completa autogestão, com os chefes da Marinha, Exército e Força Aérea com o estatuto de ministros e diretamente dependentes do Presidente da República, ele próprio um militar, e também Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

É verdade que, na política, algumas cedências têm de ser feitas quando se quer reformar. E seria injusto ignorar que algumas reformas importantes têm sido realmente feitas no campo da defesa. Desde logo, a criação de um verdadeiro Ministério da Defesa, a partir de 1982 (por sinal, iniciada por um governo de direita, que tende a ser vista como mais deferente para com os militares). Mas importa que as cedências não sejam tantas que anulem uma mudança efetiva, ou que deixem demasiadas pontas soltas problemáticas. Importa, sobretudo, que não se deixem as coisas pela metade durante décadas.

É também importante deixar claro que não há uma resistência militar às reformas decididas pelo poder civil. Estas reformas incompletas, embora resultem por vezes das pressões corporativas de certos setores de militares, são também fonte de frustração para muitos militares, nomeadamente os mais capazes e competentes, que são críticos do desperdício de recursos e de pessoal em funções que nada têm de especificamente militar. Se suceder que certas chefias militares se opõem a mudanças necessárias, cabe ao poder político dar ordens para que isso mude. Se há algo que é suposto caracterizar as Forças Armadas é a disciplina.

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Faz sentido ter uma polícia judiciária militar em países com Forças Armadas compostas por centenas de milhares de soldados – o que significa que ocorrem, inevitavelmente, com alguma frequência, crimes dentro dos quartéis — e justifica-se, nestes casos, manter um corpo especializado de oficiais com formação jurídica e policial, como parte de um sistema autónomo de justiça militar. No Portugal de hoje, porém, isso não faz sentido.

A PJM deve acabar, cuidando-se de institucionalizar uma forma de ligação entre polícia e militares, e de criar legislação específica para regular a entrada da polícia nos quartéis. Acabar com a PJM seria certamente uma solução melhor do que colocar oficiais sem formação jurídica ou policial a fazer de conta que são uma polícia judiciária, como se vê no caso de Tancos.

Bruno Cardoso Reis. Subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL, Doutor em War Studies pelo King’s College, é um dos autores do Oxford Handbook of European Defence Policies and Armed Forces. (As opiniões aqui veiculadas são apenas as do próprio).