Nos últimos anos temos assistido a uma multiplicação de eventos que relacionam a tecnologia, a arte e o território. Falo de arte urbana e eventos de rua, de novas experiências sensoriais, de exploração de novos caminhos na produção de conteúdos, de redes de criadores, agentes culturais e espaços de exibição, de plataformas de intervenção artística, de exposições, festivais e residências artísticas, enfim, da mobilização e integração de públicos muito heterogéneos. Para o efeito, as nossas bases, a história, a literatura, a cultura e a paisagem, são sempre bons motivos e boas razões para a criação de novos produtos artísticos, seja uma celebração ou reconstituição histórica, uma paisagem literária ou visita guiada ao espírito do tempo, as novas representações museológicas do património cultural ou as artes da paisagem em nome e benefício do património natural, da biodiversidade e seus serviços de ecossistema.

Em todos estes casos, e são apenas alguns exemplos, há uma nova expressão do estado do tempo, isto é, uma articulação mais diferenciada entre a tecnologia, a arte e os territórios por intermédio da rede de autores e agentes da economia criativa, numa aceção ampla, que se estende desde os centros de investigação e desenvolvimento até às inúmeras plataformas de intervenção e projetos de arte multidisciplinar. Num plano mais teórico-analítico, estou a falar de economia criativa e digitalização do simbólico e, numa aceção mais abrangente, de capitalismo digital cultural.

Nesta aceção larga e compreensiva, a economia criativa encontra a sua razão de ser no valor simbólico do testemunho. Quem se pode gabar de ter visto as gerações passadas ou as gerações futuras, a humanidade ou mesmo a natureza? Somos apenas elos de uma longa cadeia, recebemos e transmitimos testemunhos, mais ou menos imaginativos e criativos. Neste sentido, é preciso perceber que a grande área da economia dos serviços culturais está transformada numa matéria-prima essencial para o fluxo de experiências sensoriais. Quer dizer, vamos pegar nas nossas bases – a história, a literatura, o património natural e cultural, a paisagem – e proceder à sua desmaterialização por via digital e esta digitalização do simbólico será a nova matéria-prima para a produção e comercialização dos chamados novos conteúdos.

A tecnologia vai digitalizar a experiência acumulada pela história das civilizações e da cultura e vai transformá-la em conteúdos comerciais. Por isso mesmo, é necessário muito cuidado com este consumo de recursos simbólicos, já que a diversidade cultural é tão importante como a biodiversidade. É preciso tratar a diversidade cultural com muito cuidado para não a esgotar como já aconteceu com a biodiversidade e os seus serviços de ecossistema. A grande batalha do século XXI vai ser entre o comércio e a cultura. O comércio vai desconstruir todo o fluxo histórico para fazer dela uma mercadoria de conteúdos.

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Como reagir a esta mercantilização da cultura e que sentido e razão de ser para a economia criativa, em sentido amplo, neste contexto? Vamos permitir que seja apenas mais um capítulo de serviços digitais culturais no PIB ou vamos encontrar uma estrutura narrativa e ideológica para a economia criativa que nos proteja do esgotamento próximo dos recursos associados à nossa diversidade histórico-cultural tal como já acontece com a biodiversidade e o capital natural?

Neste sentido, é importante sublinhar que a digitalização da vida criará novas desigualdades e relações de poder, uma pressão constante sobre as classes profissionais e os poderes públicos, o ensino e a investigação, para além de alterar a perceção do corpo, do mundo, do tempo e do espaço. E, no entanto, a cadeia de valor entre a tecnologia digital, as artes e os sinais distintivos dos nossos territórios é extraordinariamente importante para a economia criativa, para os sistemas de produção local, para a visitação e o turismo, para a investigação e o desenvolvimento de novos produtos e conteúdos, enfim, para uma aceção mais compreensiva de bem-estar de um território e seus habitantes.

Nota Final

Em resumo, temos pela frente conexões essenciais entre tecnologia, arte e território que podem ser observadas através das hiperligações entre economia digital e economia criativa, de acordo com o seguinte programa:

  • As tecnologias digitais e os processos de digitalização dos sinais distintivos territoriais;
  • A criatividade, a classe criativa e a organização territorial dos processos criativos;
  • A fusão dos dois processos e a sua migração para dentro das cadeias de valor;
  • O mapeamento territorial das cadeias de valor e produtos e/ou serviços locais e regionais que podem albergar e ser hospedeiros destes processos e os processos de conversão daí decorrentes;
  • A transformação dos territórios, do espírito do lugar e do seu processo global de desenvolvimento.

Este será o primeiro de uma série de textos sobre as hiperligações entre a economia digital e a economia criativa e o seu impacto sobre a coesão dos territórios, em especial, aqueles com menos intensidade-rede, logo, que dependem mais da organização de economias de rede e aglomeração. Agora que iniciamos a realização de dois grandes programas para década – o PRR 2026 e o PT 2030 – podemos apreciar melhor o justo valor das hiperligações entre a economia digital e a criatividade, em particular, todo o processo criativo que nos leva de um centro de investigação ou incubadora empresarial até uma plataforma colaborativa de um marketplace de exportação. De resto, não é por acaso que 11 cidades portuguesas se candidatam a Capital Europeia da Cultura 2027 (CEC). Elas sabem bem que a digitalização do simbólico tem fortes ligações com os seus sinais distintivos, o seu sistema de produtos e o espírito do lugar.