Vivemos atualmente uma experiência sem precedente na nossa vida: um minúsculo agente infetou a nossa vida, causando uma revolução cujas consequências ainda não conseguimos estimar na sua amplitude e alcance. Esta é uma realidade incontornável em todas as áreas da atividade humana, vivida com particular acuidade no domínio da educação.

Estima a UNESCO que quase todos os países do mundo e cerca de 90% da população escolar mundial (início de abril) tenham sido afetados pela interrupção das atividades letivas presenciais, o que representa quase mil e seiscentos milhões de aprendentes. Os dez algarismos que compõem este número espelham bem a dimensão do problema.

Muito se tem falado (e muito mais se falará) dos múltiplos impactos da pandemia que nos atinge, das reações que fez despoletar nos diferentes países e das consequências dessas reações. Qualquer análise feita neste momento será sempre superficial e incompleta, porque carece de informação, ainda não disponível, nas diversas variáveis de análise. No entanto, creio que é possível fazer já algumas leituras interessantes da experiência que temos vivido. Como faço parte dos que defendem que uma crise é também um momento de oportunidade, vou focar esta análise em três vertentes: (re)valorização, aprendizagem e oportunidade.

A primeira constatação que creio ser possível fazer é a (re)valorização da escola como instituição estruturante da sociedade, quer na preparação e formação de crianças e jovens, futuros cidadãos, quer na regulação do quotidiano das nossas vidas. Adicionalmente, esta nova experiência de ensino totalmente à distância veio demonstrar o óbvio, mas que precisa de ser relembrado: o processo de ensino-aprendizagem precisa, ou melhor, vive de presença, dos laços afetivos, cimentadores das aprendizagens. E vive da relação que se estabelece entre alunos e professores (educadoras/es de infância e professoras/es dos diversos ciclos e níveis de ensino), direta e ao vivo, que permite recolher a informação importantíssima que se fornece com a interação direta, o olhar, o sorriso, um gesto, impossíveis de reproduzir num ecrã. Na realidade, todos têm saudades da escola “ao vivo”: os alunos, os professores, os pais e todos nós que contamos com a escola como um dos elementos dinamizadores da vida social.

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A segunda ideia que podemos reter é a forma extraordinária como os sistemas de ensino se organizaram e os professores transformaram a sua prática para poder manter a ligação e apoiar as aprendizagens aos seus alunos, mesmo num ambiente de crise e incerteza, que trouxe enormes desafios humanos e tecnológicos. De facto, creio que nenhuma outra classe profissional teve de alterar tão profundamente a sua forma de trabalhar e em tão pouco tempo. Em apenas alguns dias, os professores reinventaram a sua ação: perante a necessidade de recriar um novo ambiente de aprendizagem mudaram de forma significativa as abordagens didáticas e pedagógicas, os recursos de comunicação e as formas de avaliação. A concretização desta mudança implicou por parte dos professores um esforço e investimento pessoal e profissional enorme, e muitos estão (ainda mais) exaustos.

Muitas vozes têm exprimido o seu reconhecimento, até espanto, pelo trabalho desenvolvido pelos professores neste contexto particularmente difícil, mesmo alguns que anteriormente tinham posto em causa a qualidade do seu trabalho e o seu empenho. Para mim, que tive o privilégio de dirigir um Agrupamento de Escolas durante quase duas décadas, não foi grande surpresa: os professores, na sua grande maioria, orientam a sua atividade em função das necessidades dos seus alunos. A grande diferença é que, neste particular contexto, o trabalho dos professores se tornou visível, objeto de escrutínio público e de reconhecimento.

Obviamente que, a par da atividade docente, outras atividades profissionais e serviços ganharam um relevo maior e, entre eles, os profissionais de saúde e o serviço nacional de saúde. Mas outros profissionais ganharam, também, visibilidade e reconhecimento porque asseguram a manutenção da nossa qualidade de vida: os que garantem que a água chega às nossas casas, os que produzem a energia elétrica, os que asseguram o funcionamento dos sistemas digitais, os que recolhem o nosso lixo, os que nos disponibilizam os produtos alimentares, os que garantem a nossa segurança, entre outros.

Uma terceira constatação que podemos fazer neste momento é que temos vivido um período de enormes e significativos desenvolvimentos e aprendizagens em vários domínios, com particular relevância para a utilização das tecnologias de informação e comunicação. E que mundo de oportunidades se tem vindo a descobrir e explorar! A disponibilização e utilização de plataformas e recursos digitais sofreram um aumento exponencial, com o consequente desenvolvimento de competências digitais por parte dos utilizadores. No contexto educativo, estas aprendizagens têm sido ainda mais relevantes e conseguiu-se em dois meses o que levaria anos a conseguir num contexto normal. É tempo de aproveitar a marcha inexorável do desenvolvimento tecnológico e as competências que começamos a adquirir para melhorar a resposta educativa que podemos proporcionar a todos os nossos alunos e as condições de trabalho dos profissionais.

As potencialidades dos recursos tecnológico disponíveis (e tantos outros que serão desenvolvidos e melhorados) ajudarão a complementar a ação docente em diversos domínios, nomeadamente na diversificação das abordagens e estratégias pedagógicas e formas de avaliação, com enfoque na diferenciação pedagógica, com vista a uma reposta educativa mais inclusiva.

Poderão ainda ser equacionadas formas de híbridas (à distância e presenciais) e inovadoras de ensino e aprendizagem, que permitam responder à diversidade de situações de frequência escolar, como alunos em isolamento ou doentes, filhos de profissionais itinerantes, atletas de alto rendimento. Ou ainda as possibilidades que se abrem no ensino superior, de combinação de aulas online (teóricas e mais expositivas, normalmente com uma limitada ou inexistente interação professor-alunos) e presenciais (práticas e laboratoriais), de forma a permitir aos jovens estudantes fazer deslocações temporárias às suas universidades, diminuindo os encargos de alojamento e o afastamento das suas terras de origem.

Finalmente, os recursos tecnológicos poderão promover a melhoria das condições de trabalho dos docentes e uma mais fácil conciliação do trabalho com a vida familiar, como potenciar a realização de reuniões online, mais focadas, mais curtas, ou o desenvolvimento de formações acreditadas total ou parcialmente online.

Na realidade a escola como a conhecemos está em mudança. Não no sentido de se transformar em ensino à distância, mas a caminho da conciliação e rentabilização do melhor de cada uma das várias formas de ensino, complementando e enriquecendo a ação educativa dos professores e abrindo novas portas à aprendizagem.

Professora, foi Diretora do Agrupamento de Escolas de Constância durante 19 anos e Perita Nacional Destacada na Comissão Europeia. Foi membro cooptado do Conselho Nacional de Educação de 2014 a 2018. Exerce atualmente funções de coordenação no sistema das Escolas Europeias, no âmbito da Educação Inclusiva.

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.