Embora as doenças cardiovasculares sejam a principal causa de mortalidade na Europa, essa não é a perceção da população em geral, nem dos media ou da tutela em particular. Este fenómeno resulta do facto das doenças cardiovasculares serem, provavelmente, uma das áreas da medicina onde o progresso e inovação mais se têm feito sentir, com o anúncio de progressos espetaculares que nos levam a ter a ideia de que já não representam um sério problema de saúde pública.

Este fenómeno não é exclusivo de Portugal, observando-se também na vasta maioria dos países ocidentais. Por exemplo, estudos mostram que a pesquisa de causas de morte, na internet, é muito mais focada no terrorismo, que representa um ínfimo da mortalidade mundial, do que nas doenças que são na realidade potencialmente fatais. Meios de comunicação muito prestigiados, como o New York Times ou o The Guardian, dedicam muito mais espaço ao terrorismo do que a essas doenças.

Do nosso ponto de vista, esta perceção acaba por ter efeitos negativos na relevância e investimento dados a estas patologias com maior impacto na saúde e bem-estar populacional. Mesmo dentro das doenças, para o cidadão comum, é muito mais assustadora a patologia cancerígena que a cardiovascular, sendo desconhecido que algumas das doenças cardiovasculares mais comuns têm uma mortalidade superior à da maioria dos cancros.

A Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) tem por missão a melhoria da saúde cardiovascular da população portuguesa e para alcançar esse objetivo não poderá ser um organismo fechado sobre si próprio através da formação e implementação da investigação científica dos seus associados. Deverá, em simultâneo, ser um elemento participativo junto da sociedade civil e aberto à comunidade.

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Neste capítulo, identificamos quatro vetores sobre os quais importa trabalhar: tentar colocar as doenças cardiovasculares no topo da agenda, sermos mais eficientes na otimização dos recursos já existentes, contribuir para contrariar a iniquidade territorial na distribuição dos recursos e termos bons registos da atividade desenvolvida para sabermos, exatamente, o que estamos a fazer e que resultados estamos a obter.

O Parlamento Europeu também tem mostrado interesse em contribuir para uma maior visibilidade das doenças cardiovasculares. A SPC, alinhada com este processo, está a elaborar um plano estratégico que visa fazer um levantamento das patologias que mais impacto têm na população portuguesa e propor ações que possibilitem uma melhoria transversal, desde a prevenção, passando pelo diagnóstico, tratamento e reabilitação.

Seguramente, estivemos demasiado tempo muito focados na medicina curativa baseada no tratamento das doenças e demos pouca atenção à prevenção. As doenças cardiovasculares são possivelmente aquelas em que a prevenção tem maior impacto, sendo importante o início precoce da formação dos mais jovens.

Será importante que os programas escolares incluam informação de bons hábitos de higiene alimentar, assim como exercício físico. Inclusivamente, seria muito relevante que os mais jovens tivessem formação em manobras básicas de reanimação, que potencialmente podem levar a salvar muitas vidas, numa sociedade cada vez mais tecnológica e com maior disponibilidade de desfibrilhadores no espaço público.

No extremo oposto está a reabilitação. Após um evento cardíaco, como um enfarte do miocárdio, há todo o benefício em que o doente seja integrado num programa de reabilitação cardíaca. Lamentavelmente, Portugal é um dos países europeus onde os doentes têm menor acesso a estes programas, o que nos deixa numa situação muito desconfortável porque claramente não estamos a oferecer à nossa população tratamentos essenciais para a sua recuperação.

É um facto que todos nós nos sentimos orgulhosos pelo nível da cardiologia que se pratica no nosso país porque praticamos tudo o que de melhor e mais inovador se realiza a nível mundial. Estes sucessos escondem uma realidade que nos preocupa seriamente, pois apenas uma parte de doentes tem acesso a toda essa inovação.

A cardiologia praticada no interior do país é uma cardiologia de sobrevivência, onde as populações dificilmente têm acesso a métodos de diagnóstico e tratamento adequados. Muitos dos hospitais do interior nem sequer têm equipas de cardiologia em permanência e, à medicina geral e familiar, faltam métodos de diagnóstico básicos para as doenças cardiovasculares mais comuns.

Apesar dos elevados investimentos em saúde, não devemos esconder que os recursos atuais, em termos de estrutura, na generalidade estão muito desatualizados, senão mesmo obsoletos e com necessidade de renovação. Equipamentos hoje fundamentais para o diagnóstico das doenças cardíacas, como são a TAC e a ressonância magnética são tão escassos no SNS que os médicos se vêm obrigados a recorrer a alternativas muito menos eficazes ou, então, os doentes vêm-se compelidos a recorrer ao sector privado caso tenham a capacidade de pagar exames com custos elevados.

Para sabermos o que estamos a fazer e que resultados obtemos necessitamos de bons registos da atividade. Presentemente, os registos das sociedades científicas e os do Ministério da Saúde são incompletos e com números de fiabilidade duvidosa.

Importa que todos trabalhemos para conseguir melhores registos. Embora existam listas de espera para cirurgia oficiais, elas já não existem para outras intervenções igualmente importantes e, por isso, ignoramos os doentes que aguardam por exames e intervenções, desconhecendo o impacto associado.

Registos sectoriais, por exemplo, numa doença muito comum nos mais idosos, o aperto da válvula aórtica, mostra listas de espera de longos meses para a realização de TAC e depois, outros longos meses para a realização da intervenção, com uma mortalidade em lista de espera absolutamente inaceitável, mas do desconhecimento do domínio público porque não é registada.

Um importante estudo no âmbito da insuficiência cardíaca (Porthos), recentemente publicado pela SPC e que envolveu milhares de participantes, mostrou não só o subdiagnóstico da doença, como também a discrepância da prevalência entre as várias regiões do país, o que vem comprovar a iniquidade na assistência médica.

Se, ao nível das infraestruturas poderemos, com alguma facilidade, melhorar, com mais investimento e eficiência, já ao nível dos recursos humanos, a situação apresenta-se bem mais complexa. Os erros do passado e do presente poderão ter repercussões negativas nas próximas décadas e não serão facilmente remediáveis.

As deficientes condições de trabalho, a praticamente aniquilação das carreiras profissionais, a par das baixas remunerações, conduziu à sangria de milhares de profissionais de saúde do SNS para o sector privado e para o estrangeiro. Para quem já trabalha há várias décadas no sector público, também é notória a degradação das condições de formação dos profissionais. Cada vez mais, a medicina é subespecializada, mas, por outro lado, temos doentes mais idosos e com maiores comorbilidades, necessitando de uma orientação multidisciplinar que não se compadece com agendas sobrelotadas, horários reduzidos e desfasados e escassez de profissionais.

Sabemos que vivemos num mundo em que a evolução científica e tecnológica é muito rápida e a inteligência artificial rapidamente entrará pelas nossas casas e hospitais, integrando-se na atividade diária. Isto provocará uma mudança radical, modificando radicalmente a visão atual da temática da saúde e potencialmente irá mesmo ser um importante instrumento na avaliação e tratamento das doenças cardiovasculares.

Hélder Pereira é diretor do Serviço de Cardiologia e da Unidade de Cardiologia de Intervenção do Hospital Garcia de Orta e cardiologista na CUF. É também professor auxiliar de cardiologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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