A frase de António Costa como resposta ao desafio da presidente da Comissão Europeia – “A lot of work ahead of you…” – fez sorrir muita gente mas devia ter-nos feito chorar. A caminho dos 50 anos da revolução do 25 de Abril, eis-nos reduzidos a um país de mão estendida, perguntando quando é que podemos ir levantar o cheque.
E para quê, quando até socialistas reconhecem que “é penoso ver que com tantos apoios ainda estamos entre os países atrasados” – neste caso a mesma responsável que ainda há bem pouco tempo jurava que a ideia de que gastámos mal o dinheiro de Bruxelas era “completamente absurda”?
Mas como nada de substancial mudou, os cheques que aí vêm serão gordos suficientes para assegurar que nos próximos anos haverá dinheiro bastante para alimentar as clientelas e prolongar ilusões.
A bazuca, com este PRR, mesmo com o “lot of work ahead of you” que a Comissão Europeia se empenhou em colocar num longo e detalhado caderno de compromissos (são estas 202 páginas de um anexo que se procurou esconder em Portugal), tem tudo, mas mesmo tudo, para ser um cheiro de especiarias da Índia ou uma visão do ouro do Brasil – outra vez. Bem pode pregar o Presidente que de pouco valerá, o barco pedinte e esfarrapado já saiu do porto.
Vale a pena perceber porque navega ele na direcção errada e porque no fim da viagem nos deixará ainda em piores lençóis.
Convém perceber o país que somos neste momento – assim como o Estado que temos. Convém olharmo-nos ao espelho, mesmo que não apreciemos o retrato que ele nos devolve.
Comecemos pelo Estado que temos, pois é por ele e para ele que o PRR foi pensado e vai ser executado.
Nestes meses de pandemia tive de interagir várias vezes com a Administração Pública, com serviços dos mais diversos. A experiência foi tétrica. Praticamente nunca os assuntos se resolveram de forma natural, fazendo seguir os processos como deveria ser, nos prazos correctos, sem complicações. Quase sempre foi necessário procurar alguém conhecido que ajudasse a desbloquear o que não devia estar bloqueado. Enfim, o mundo que conhecemos da burocracia à portuguesa.
Fiz sempre tudo sempre dentro da normalidade e da lei, ou seja sem nunca recorrer a expedientes semelhantes ao clássico pedido para fechar uma janela quando se pretende abrir uma janela, pois já se sabe que a câmara indeferirá sempre o pedido e assim a janela fica legalizada (conheço quem já tenha usado este expediente). Isto quando não se passa o limite do absurdo, como naquele caso de alguém que, para conseguir autorização para construir uma casa de madeira, teve de entregar falsos cálculos de uma inexistente estrutura de betão porque o regulamento previa que houvesse… estrutura de betão.
Estas histórias seriam anedóticas se não correspondessem a regras: lei a lei, regulamento a regulamento, procedimento a procedimento, camada a camada, a Administração Pública portuguesa não serve hoje o cidadão, muito menos a economia. A Administração Pública auto-justifica-se e auto-perpetua-se, ciosa dos seus feudos e dos seus pequenos poderes. Tudo ou quase serve para complicar, o princípio base é a desconfiança relativamente ao comum dos mortais, o resultado é quase sempre o disparate, como acabamos de ver nestes processos tão simples como autorizar manifestações na cidade de Lisboa.
E não se iludam: a milagrosa “digitalização” não resolve nenhum problema de fundo se essa digitalização se limitar a digitalizar a complicação, se não houver revisão de processos, se não houver desregulamentação, se não acabarem as quintas e quintinhas, se não acabar a obsessão controleira da Administração Pública. Ora nada indica que a nossa dita “modernização administrativa” queira mudar a substância e perceba que é mesmo necessário descomplicar – pelo contrário: cada novo regulamento que sai pode prever a digitalização, mas traz por regra mais complicações, mais alçapões e mais minutas para preencher.
Mesmo assim talvez houvesse esperança de derrotar estas almas burocráticas que nos pastoreiam se não houvesse tanto dinheiro – isto é, se não viesse por aí esse dilúvio de fundos. O estado de necessidade aguça o engenho ao passo que a abundância amolece os espíritos.
Sem qualquer pudor o nosso primeiro-ministro já anunciou as suas intenções para os próximos anos – ir ao banco e não perder tempo com autoflagelações, mesmo sabendo nós que vamos voltar às velhas receitas, já que mais de um quinto do investimento irá para… a construção civil.
Com um PRR todo ele pensado para compensar o que o Estado não investiu nos últimos anos, sobretudo nos anos da geringonça em que o investimento público atingiu mínimos históricos, e no resto desenhado de acordo com aquilo que os nossos visionários governantes imaginam que será a economia do futuro, o mais provável é que o dinheiro da bazuca crie uma ilusão de falsa riqueza num país que, daqui por uns anos, estará estruturalmente mais pobre.
Como é que isto pode suceder? Da mesma forma que sucedeu e sucede nos países que vivem de recursos fáceis e não têm de lutar para gerar riqueza própria. Os exemplos que nos vêm logo à cabeça são Angola ou a Venezuela, países riquíssimos em recursos naturais mas onde o povo vive na miséria, mas há um exemplo europeu clássico que levou a literatura económica a falar de uma “Doença Holandesa”. Numa recente entrevista ao Observador, João Moreira Rato considerou que Portugal podia viver exactamente a situação que a Holanda conheceu quando descobriu grandes reservas gás natural, à primeira vista uma coisa boa mas que gerou grandes distorções em toda a economia. O mesmo se pode passar entre nós se por decisão política se investirem recursos em sectores sem futuro e sem mercado, o que sucede quase sempre quando o comando da economia está nas mãos de um governo, seja ele qual for.
Um outra abordagem a este mesmo cenário de pesadelo é a que tem proposto o historiador económico Nuno Palma (por estes dias um dos alvos preferidos das redes sociais e da esquerda bem-pensante) precisamente porque estudou a evolução da nossa economia não apenas neste século, mas desde o período da Expansão. Ele fala em “maldição dos recursos” e podemos não concordar com tudo o que ele defende para explicar o porquê da decadência portuguesa nos séculos XVIII, XIX e boa parte do século XX, mas ele radica-a na destruição das instituições produzida sobretudo na sequência do afluxo do ouro do Brasil, que permitiu distribuir dinheiro sem ter de produzir riqueza, um panorama de que Portugal nunca mais recuperaria.
A situação que vivemos desde a adesão à Europa é também um quadro de afluxo de riqueza – directamente sob a forma de fundos, indirectamente sob a forma de dinheiro barato, pois beneficiamos da política monetária do BCE – que se num primeiro momento ainda produziu crescimento, aquando do choque da adesão (sobretudo de 1986 a 1991), depois produziu sobretudo estagnação e mesmo uma bancarrota. Só um novo choque, o da intervenção externa, nos fez virar de novo para os mercados externos.
O quadro que venho descrevendo já seria suficientemente mau – um Estado que não se reforma e só atrapalha, um PRR estatista e dirigista, uma sociedade subjugada pelo que uns chamam a “doença holandesa” e outros “a maldição dos recursos” – se não tivesse ainda de acrescentar mais um cavaleiro do Apocalipse: é que vem aí também mais canga que as gerações futuras terão de suportar. E essa canga é um Estado que entretanto não deixará de crescer e de se tornar cada vez mais monstruoso, insaciável e ingerível.
O “plano” que está previsto não é construir mais auto-estradas a eito, porque esse tempo já passou, mas haverá disparates com fartura na ferrovia, veremos se alguém se entende no que aos aeroportos e portos diz respeito e já todos percebemos que TAP é um buraco onde enterraremos milhões e milhões sem destino nem proveito. Mas o que inquieta mais é ver como alguns modelos que mal ou bem vão funcionando podem ser destruídos por visões megalómanas e estatistas.
Um bom exemplo disso é o que António Alvim nos descreveu aqui do que querem fazer à sua Unidade de Saúde Familiar, que poderá dar lugar a uma espécie de mini-hospital com todas as condições para se tornar num foco de problemas em poucos anos. Não vou entrar em detalhes, mas de novo estamos perante a obsessão ideológica de acabar com tudo o que é privado na saúde, mesmo o que funciona bem, como o sector convencionado dos auxiliares de diagnóstico, uma área muito especializada e que muito dificilmente funcionará bem em centros de saúde dependentes de ARS e de autorizações para compras e contratações dependentes de vistos do Ministério das Finanças.
Aqui, como em muitos outros lugares onde se gastarão milhões, ficarão para o futuro encargos de funcionamento inflacionados, muitas vezes sem qualquer ganho de causa. Já vimos isso acontecer com muitas obras luxuosas da Parque Escolar, mas quem não quer aprender, não aprende nunca.
Corram pois para o banco, pois é tudo quanto sabem fazer. Para nossa imensa, infinita desgraça.
Siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957).