Muitas pessoas vêm a este mundo em condições extremamente difíceis. Algumas nascem em situações de extrema pobreza1, nalguns casos no meio de uma guerra, inundação, epidemia2 ou fome. Outras nascem sem família3, com um órgão que não funciona ou sem um membro, cegas ou surdas. Será isso uma injustiça4 da parte de Deus? Será que ficam, por isso, condenadas à infelicidade5? Kobayashi Haru (小林ハル, 1900—2005), conhecida como “a última goze”, respondia “NÃO” a ambas as perguntas.

Kobayashi teve uma vida muito, muito dura. Pouco depois de nascer foi diagnosticada invisual. Dois anos depois morreu-lhe o pai. Uma áugure, para a incredulidade da mãe, predisse que teria uma longa vida, que seria goze 瞽女, e que seria feliz mas, que para isso pudesse acontecer, seria necessário reverter o mau karma com que nascera. Como? Só é possível reverter o mau karma de uma criança com uma educação rigorosa, foi a resposta. Rigorosa como praticada por um ogre, acrescentou. Por “educação”, nem a áugure, nem a mãe, entendiam coisas como literatura, ciências naturais ou sociais, e muito menos a deseducação para a cidadania. Entendiam formação moral tradicional, muito confucionista, e a aquisição de competências que permitam a independência pessoal.

Quando tinha uns 5 anos a mãe começou a educar sistematicamente a filha para vida que ia ter como goze, uma carreira que Haru não escolheu. Goze eram cegas que ganhavam a vida como músicas itinerantes, indo de aldeia em aldeia, cantando e tocando o shamisen. Andavam em pequenos grupos, de 3 ou 4, guiadas pelos caminhos das montanhas e das planícies por uma acompanhante com boa visão. Formavam uma corporação hierárquica, hétero-matriarcal, com vários graus, de aprendizes a mestres. Uma corporação semelhante, mas independente e também muito antiga, existia para os homens, os tōdōza 当道座, mais conhecidos pelos fãs portugueses como biwa hōshi 琵琶法師.

Uma das linhas orientadoras que a mãe seguiu na educação que deu a Haru foi torná-la capaz de se dar com todos, os simpáticos e os antipáticos, os benevolentes e os maldosos. Outra foi torná-la autónoma, capaz de se desenvencilhar sozinha. Isso incluía o ser capaz de passar uma linha pelo olho de uma agulha para poder costurar e arranjar os seus kimono. Como, se ela não conseguia ver nem o céu nem a terra, nem as árvores ou as pessoas, muito menos a ponta de uma linha ou o buraco de uma agulha? A resposta da mãe foi um bocado zen, como seria de esperar no País do Sol Nascente: “O teu corpo é olho”… A miúda não percebeu imediatamente a utilidade deste conselho, mas aos poucos irá descortinar a sua importância prática e relevância existencial. Muitas outras instruções lhe deu a mãe, incompreensíveis para um tuga contemporâneo, como não comer enquanto outra pessoa à sua volta estivesse com fome (“quer isso dizer que tenho que ficar com os restos?” perguntaria qualquer nacional-sindicalista pré-púbere lusitano) e nunca se queixar de nada, seja do que for, ou de quem for, mas, como um aikidoca, usar a força dos golpes que a vida nos dá para potenciar a nossa felicidade.

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Passados uns tempos começou a sua carreira de goze como aprendiz de madame Fuji, que além de rigorosa e competente era um caracter odioso e sádico. O seu treino de kangoe 寒声, um estilo praticado pelas goze, envolvia ir cantar, vestida com roupa de verão, para as margens geladas e ventosas de um rio, durante os meses de inverno, fizesse neve ou granizo. Múltiplas fissuras nas suas fíbulas, tíbias e fémures atestam a laboriosidade, persistência & empenho do cajado6 de madameno progresso profissional da aprendiz. Aos 15, Haru recebeu autorização da grã-mestre das goze para mudar de mestre e, sob a direção de madame Sawa, que tinha uma personalidade que estava para a de madame Fuji com o ying está para o yang, o seu engenho e arte floresceram.

Isto não quer dizer que os problemas, dificuldades, desapontamentos e violências desaparecessem da sua vida. A existência de Kobayashi Haru neste mundo foi sempre difícil, mas ela não a considerava infernal, apenas purgatória. Conseguiu sempre enfrentar com coragem as adversidades que encontrou e, o mais espantoso, sem ressentimentos e com paciência, com compaixão e considerando-se bastante feliz. Já idosa a sua arte e virtuosismo deram-lhe alguma notoriedade e, em 1978, foi nomeada Tesouro Vivo Nacional 人間国宝 e, em 1979, foi agraciada com a Medalha de Honra com Fita Amarela 黄綬褒章.

Ler a sua biografia, ou visualizar um filme7 recentemente realizado sobre a sua vida, que se foca especialmente nos seus primeiros vinte anos, é contactar com uma visão alternativa, agora impraticável, do que pode, quiçá, deve ser a educação—muito diferente da perspetiva que existe hoje no nosso país, desde os gabinetes do ministério da deseducação até aos salões de jogos em que tornaram a maioria dos lares portugueses contemporâneos.

Os pais podem encontrar nesse filme um dilema de que deviam sempre estar conscientes e que que muito fez sofrer a mãe de Haru: compatibilizar o amor maternal com a disciplina e a exigência na escolha, que têm de fazer todos os dias, entre o descontentamento presente mas passageiro de uma criança que recebe uma educação eficaz mas severa, focada no desenvolvimento de competências morais, sociais e profissionais que lhe potenciarão a autonomia e felicidade futuras, ou numa deseducação focada na gratificação presente e momentânea dos caprichos passageiros que lhe desenvolve a insatisfação permanente, o desajustamento social e a nulidade pessoal. Qual é a atitude responsável e amorosa num pai ou numa mãe? Amimalhar o puto para a disfuncionalidade ou treiná-lo severamente para a responsabilidade & autonomia?

No entanto, a visualização do filme sobre a infância e adolescência de Kobayashi Haru é vivamente desaconselhada aos profissionais do sistema oficial de deseducação a começar pelo seu irresponsável ministerial máximo e respetivos secretários. Assistir a “The last Goze“ constituirá certamente uma experiência traumática para todos os profissionais do wokismo educacional, não tanto pela violência das imagens e dos diálogos, mas pela apresentação de uma perspetiva de uma filosofia educacional alternativa, matriarcal8 e não eurocêntrica, datada, exótica e nada erótica, mas que parece ter tido algum êxito em preparar crianças desfavorecidas para uma vida com significado pessoal e social e que lhes proporcionava uma pitada de felicidade.

Para todos os outros tugas, conhecer a vida & o processo educativo pelo qual Kobayashi Haru passou será provavelmente empoderador y libertador. No mínimo oferecerá uma lição de vida. “Caminhar com boas pessoas é uma festa”, dizia Kobayashi Haru. E acrescentava: “Caminhar com pessoas más é uma [boa] lição”.

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece. #EncuantoNusDeixam

Notas:

  1. Pobreza: estado do que é pobre9; a mãe do engenho e de várias outras virtudes entre as quais por vezes se conta a fé em revolucionários y progressistas que prometem um mundo sem ela e sem as suas virtudes.
  2. Epidemia: doença sociável e sem preconceitos de raça, religião, ou classe social; linha de produto pouco rentável para médicos, mas extremamente pingue para empresas farmacêuticas.
  3. Família: célula social; na sua forma atual é conjunto destruturado de dois ou mais indivíduos que inclua um gato ou um cão; na sua forma tradicional era uma organização focada na reprodução humana, estruturada para a exploração do homem pela mulher e dos pais pelos filhos e constituída por uma mulher, um homem, várias crias, criadagem e motorista (o cão ou gato eram facultativos).
  4. Injustiça: fardo sem peso quando o pomos nas costas dos outros, mas esmagador quando o temos que carregar aos nossos ombros.
  5. Infelicidade: sensação desagradável originada pela observação da boa fortuna dos outros e que nos acorda para o wokismo.
  6. Cajado: pau direito e rijo usado no hétero-matriarcado como instrumento para dirimir desavenças; no hétero-patriarcado usava-se a catana.
  7. Existem vários filmes biográficos de Kobayashi Haru. O mais recente é: Goze 瞽女, com direção Takizawa Masaharu 瀧澤正治, e Kawakita Non 川北のん, Yoshimoto Miyu 吉本美優, Nakajima Hiroko 中島ひろ子 nos principais papéis (2020). Uma curta apresentação do filme pode ser visualizada aqui. Existe versão com legendas em inglês, intitulada The Last Goze. Um curto resumo da vida de Kobayashi Haru, legendado em inglês, pode ser visto aqui. Também foram produzidos vários programas televisivos sobre a sua vida. Um, parcialmente legendado em English, pode ser visto aqui.
  8. Matriarcal: forma organizacional onde é a mãe que manda; por extensão, todas as organizações onde as mulheres mandam e onde cabe aos homens a difícil função de tentar suavizar a aspereza desse mando.
  9. Pobre: bem-aventurado, porque dele é o reino dos céus (Mt 5, 3); a inveja que os pobres e a sua bem-aventurança despertam nos abastados e ricos tem levado a inúmeras propostas e planos para a abolição do capital e da riqueza, uma das mais conhecidas e eficazes das quais será a da autoria de Karl Warx, um burguês bon-vivant que nunca trabalhou num campo ou numa fabrica, e cujas propostas asseguram com sucesso a generalização da miséria e bem-aventurança a toda a população sempre que são aplicadas; alguém que, na profecia de Nosso Senhor (Jo 12, 8), teremos sempre no meio de nós, o que leva à questão: será que Deus, na sua misericórdia, se está a servir do warxismo — e du ps — para assegurar o cumprimento desta profecia no nosso país?