Há exatamente 57 anos, a minha mãe era certamente uma das mulheres mais felizes do mundo, tal como o meu pai, com o nascimento de outro filho. O mesmo tinha acontecido alguns anos antes, quando eu cheguei ao mundo, e o mesmo aconteceria alguns anos depois, com o nascimento das minhas irmãs. Ao longo das nossas vidas, em alguns anos muito complicados para os meus pais e avós, sempre fomos apoiados, protegidos e acariciados (ainda hoje a minha mãe liga-nos semanalmente, ao meu irmão e a mim, ambos perto dos 60 anos e com uma vida desafogada nos Estados Unidos, “para ver como estão as coisas”).  E depois de sairmos da casa da família, todos os filhos tivemos a sorte de encontrar bons amigos, colegas,   vizinhos, que nos acompanharam numa vida de alegria e felicidades, onde os “altos” têm sido certamente predominantes em oposição aos “baixos”.

Lisa Montgomery, condenada a morrer hoje às mãos do Governo na prisão de Terre Haute, no Indiana, teve uma vida oposta à nossa. A senhora, agora com 52 anos, foi detida por estrangular uma mulher grávida, a quem esventrou para tirar o bebé prematuro. Um crime horrendo. Mas quem conhece os detalhes da vida de Lisa tem que questionar o que a levou a demorar tanto tempo a tornar-se numa criminosa sem piedade. Agarre-se à cadeira.

A vida diabólica da Sra. Montgomery começou mesmo antes de nascer; viu o mundo já afetada pelo álcool de que a sua mãe abusava sem conta ou medida. Em menina, foi punida amiúde, e extremamente: num dos casos conhecidos, a progenitora pô-la fora da casa de castigo, nua durante uma tempestade de neve. Alguns anos mais tarde, ainda na infância, era sexualmente atacada por vários namorados da mãe e antes de fazer 13 anos foi constantemente violada por um padrasto. Depois, ainda pior: os pais mantiveram-na trancada num anexo onde era violada e torturada pelo padrasto e amigos quase todos os dias; e como se isso não bastasse, a mãe pagava a eletricistas, canalizadores e outros homens de reparos oferecendo o corpo da filha – que a amarravam, batiam-lhe e urinavam sobre a jovem durante as orgias sexuais.

Lisa queixou-se à Polícia e foi ouvida por juízes – mas nunca ninguém lhe prestou atenção. Acabou por casar com um meio-irmão com quem teve várias crianças e que, como Deus não existe na sua vida, fazia vídeos pornográficos para distribuir aos amigos onde, sorridentemente, violava e espancava a mãe dos seus filhos. Quando Lisa se divorciou e arranjou um novo marido, há muito que não era uma pessoa como as outras (de acordo com estudos, Lisa sofre de lesões cerebrais permanentes, é bipolar, vive com distúrbio dissociativo e stress pós-traumático). Por isso, a surpresa não pode ser muita ao vermos esta morta-viva, violentada pela mãe, violada pelo pai, marido e seus amigos, abandonada pela família, polícia e justiça, assassinar uma mulher para lhe roubar o bebé porque tinha mentido ao seu novo marido dizendo-lhe que estava grávida – Lisa tinha medo que a sua mentira a levasse a perder os quatro filhos; e ela era, sempre foi, de acordo com testemunhas, uma mãe modelo, apesar de todo o seu passado catastrófico.

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A defesa de Lisa Montgomery foi deixada a advogados mal preparados que não estavam para defender uma criminosa cujo caso deixou o país boquiaberto. Em apenas cinco horas, sem ter em conta o seu estado psíquico e outras causas circunstanciais, algumas delas nunca apresentadas em tribunal por mero desleixo, o júri deliberou condená-la à pena de morte. Depois de algumas décadas de moratória em que as sentenças de morte não foram executadas nos Estados Unidos, o Presidente Trump achou estar na altura de agradecer aos seus apoiantes mais trogloditas e retomou a contagem decrescente. Está prevista para hoje uma injeção letal para a Sra. Montgomery, uma mulher que merecia antes sentar-se à direita do Pai, enquanto todos os que a rodearam, vivos ou mortos, expiam o pecado prestes a ser cometido.

* Horas antes de ser aplicada a injeção letal, um juiz de um tribunal do Indiana suspendeu a execução, ordenando a realização de uma audição destinada a avaliar se Montgomery seria “mentalmente competente” para ser executada. O Supremo Tribunal de Justiça norte-americano reverteu, no entanto, a decisão e Lisa Montgomery foi executada às primeiras horas desta quarta-feira por injeção letal. Foi o 11º recluso a ser executado desde Julho do ano passado, mês em que Donald Trump decretou que se retomassem as execuções dos condenados a pena de morte, que já não ocorriam há 17 anos. Joe Biden, o presidente-eleito, prometeu, entretanto, suspender todas as execuções quando chegar à presidência.

Crónica atualizada às 09h00 de dia 13 de janeiro.