Quando julgávamos que já sabíamos a lição, eis que o professor nos diz que afinal é tudo ao contrário, e lá temos de a aprender outra vez. Lembram-se do que nos tinham ensinado o ano passado, quando Biden pôs os EUA a fugir de Kabul? Sim, foi isso: tínhamos de aceitar que o Afeganistão nunca seria a Suíça, e que o mundo não estava obrigado a seguir os nossos valores. Há vinte anos, George W. Bush e os “neo-conservadores” tinham pretendido pôr as meninas afegãs na escola. Essa era de imperialismo humanitário acabara.

Esta foi a sabedoria da imprensa e das redes sociais até há um par de semanas. Mas bastou as equipas de futebol começarem a embarcar para o Qatar, e tudo mudou. O Qatar foi escolhido para organizar o Mundial de Futebol há 10 anos. Ninguém se lembrou então da democracia, dos direitos das mulheres, da liberdade sexual, da corrupção ou do tratamento dos imigrantes, tal como ninguém se lembrou de nada disso durante o Mundial de 2018 na Rússia, quatro anos depois de Putin ter invadido a Ucrânia e anexado a Crimeia, ou durante os Jogos Olímpicos de Inverno na China, há uns meses. Há dias, a santa cimeira do clima decorreu, sem comentários, num Egipto ditatorial e corrupto. Agora, porém, ai do chefe de Estado que vá assistir a um jogo no Qatar sem rasgar as vestes e deitar cinza na cabeça, e ai dos jogadores que não aproveitem a entrada em campo para um retrato de protesto. Que se passa? Porque é que a lição do Afeganistão já não vale? George W. Bush tinha afinal razão?

Um dia, Eça de Queiroz revelou como resolvia o problema de produzir uma coluna de jornal quando não era possível “arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito ou do ventre”. Para essas terríveis esterilidades, havia um recurso: agarrar “ferozmente” na pena e dar, “meio louco”, “uma tunda desesperada no bei de Tunes”. O bei era o governador otomano do que é hoje a Tunísia. Do outro lado do Mediterrâneo, diante de uma Europa liberal e progressiva, o bei presidia a um poder decrépito e corrupto, que protegia a pirataria e mantinha a escravatura. À falta de assunto, era a salvação do colunista: como podia a Europa tolerar aquele atentado à civilização? Os leitores indignavam-se sempre. O jornalismo perdeu este grande recurso em 1881, quando a França ocupou e começou a “civilizar” Tunes.

Está o Qatar a ser a nossa Tunes, o tema a que desesperadamente nos agarramos quando a inspiração não atende o telemóvel? No entanto, não parecem faltar assuntos. Em Portugal, temos a primeira diminuição da população depois de 1970. Por toda a Europa, a inflação mais alta desde há 30 anos ou a guerra na Ucrânia. Talvez afinal não faltem assuntos, e estejamos apenas a precisar de um interlúdio ligeiro, em que fazemos de conta que só o Qatar não nos deixa dormir.

Estou a dizer que o Qatar é a Suíça? Não. Estou a dizer que se querem que o Mundial de futebol seja em países iguais à Suíça, façam-no sempre na Suíça ou quando muito na Suécia. De resto, o Ocidente, como em tempos explicou John Rawls, tem de saber distinguir entre regimes agressivos, como o Afeganistão e o Iraque em 2001-2003, e aos quais deve responder com sanções e, se necessário, a força, e regimes que, embora estranhos a alguns dos nossos valores, são pacíficos, como o Qatar. Em relação a estes, resta-nos esperar que mudem através do intercâmbio comercial e cultural. Não devemos calar-nos, mas não é do nosso interesse tratá-los como párias.

Entretanto, ao fim de uma semana de “tundas”, com o Presidente da República à frente, o governo do Qatar chamou o embaixador português. Oxalá um qualquer comércio ou investimento de que desesperadamente precisemos não nos faça engolir algum vexame, e descobrir que nem toda a gente pode bater no bei de Tunes.

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