Já quase tudo foi dito.

Mas não é demais sublinhar alguns aspetos de Paulo Gonçalves que me faziam consumir, e não estou certamente isolado, os resumos televisivos do Dakar.

Primeiro, era o português de referência.

Segundo, corria no veículo que nos permite a total evasão: moto. Quem não experimentou não sabe do que falo.

Depois, era um duro, um resistente, um incansável, um homem de risco. Mas também um grande ser humano.

Como disse Price, o piloto australiano que bem conhecia Paulo Gonçalves e o primeiro e encontrá-lo depois do desastre, “…perderam um grande guerreiro”.

Sim, perdemos um grande guerreiro.

E um nobre guerreiro. O guerreiro que parava para ajudar quem fosse.

E também o homem que nos trouxe um segundo lugar no Dakar.

Perdemos um homem que nos fazia sonhar.

Perdemos uma referência de como estar numa moto como se está, ou deve estar, na vida.

Perdemos um exemplo do fazer com risco, sem recursos e sempre com lado humano.

E é aqui que me quero deter neste textinho.

Quem gosta de motos, de evasão, de risco, de projetos, de se desafiar não podia senão encontrar no Paulo um exemplo transportável para todas as áreas da vida.

Porque viver sem nos testarmos é viver pouco, ou nada.

Porque viver seguro é não viver.

Porque não arriscar, não ousar, não procurar voar torna a vida desinteressante.

Mas mais, há também, e muito expressiva, uma dimensão humana que é impossível esquecer no Paulo. A dimensão amizade, a dimensão colaboração, a dimensão apoio. Quanto melhores todos estivermos mais interessante e disputada se tornará a prova. Um homem assim é um exemplo.

Dakar após Dakar o Paulo oferecia-nos três lições de vida (certamente mais mas, estas três, são para mim incontornáveis pelo que tenho de as mencionar):

  1. A dimensão risco. Nada é interessante ou “salgado” ou merecedor da nossa atenção como os projetos com risco, com incerteza, com desafios para além do que pensamos poder contornar e ultrapassar. Nada é tão interessante nas nossas vidas como a capacidade que devemos ter de, dia-após-dia, nos testarmos e nos ultrapassarmos. Como muito se escreve e diz nos dias que correm, travarmos batalhas connosco próprios. Porque é connosco que nos devemos comparar para nos ultrapassarmos. Para nos superarmos. O Paulo foi, é, e continuará a ser sempre, agora em gravação e em memória, a prova viva de que é possível fazer com risco. É possível salgar a vida com muito daquilo que nos podemos oferecer em termos de superação. Contra nós próprios. Desafiando-nos a nós próprios.
  2. A dimensão recursos. Dir-se-á que arriscar e ultrapassar e fazer mais e melhor e as provas de superação a que somos postos à prova serão possíveis se com recursos. Todos os recursos que o Paulo teve para a sua equipa, na comparação com outros pilotos, foram sempre bem limitados. Daqui se conclui, portanto, que a limitação de recursos não é um impeditivo à superação. Não é um impeditivo ao risco. Não é um impeditivo a que nos desafiemos a nós próprios. Não é um impeditivo ao lado humano. E, portanto, não deverá servir como desculpa. E isto é tão assim nas nossas vidas… Sem recursos até se vê mais a nobreza do guerreiro. Sem armas que outros possam ter e sem acesso a elas, ainda assim, devemos estar lá para deixar a nossa marca.
  3. A dimensão humana. Porque é esta que, conjuntamente com as outras duas, nos permite efetivamente vivermos uma vida diferente, para melhor. A dimensão humana na ajuda aos outros. A dimensão humana em querer que os concorrentes sejam melhores para ter, sempre, melhores provas. A dimensão humana na palavra, no testemunho e na capacidade para estar sempre disponível. Sempre pronto. Sempre a ajudar quem fosse e sempre disponível para quem fosse.

Era assim o Paulo.

É por tudo isto que, percebendo que o Sr. Presidente da República distribua afetos e medalhas e estímulos a muitos não percebo, de todo, porque não o fez neste caso. Da presidência da república saiu um comunicado, sic: “Paulo Gonçalves morreu a tentar alcançar o sonho de vencer uma das mais duras e perigosas provas de rali do mundo, na qual foi sempre um digníssimo representante de Portugal chegando a alcançar o segundo o lugar em 2015.”

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Pois eu teria preferido um comunicado como: “Paulo Gonçalves deu-nos sempre o seu melhor. Mostrou-nos o que é viver com risco e como a vida com entrega pode ser tão melhor com esse mesmo risco em prol da superação. Portugal, todo o Portugal, deveria arriscar mais para evoluir mais e se superar como o fez o Paulo. Mostrou-nos o que é viver sem recursos, ou com menos recursos. E como, ainda assim, é possível tentar o melhor. Portugal, todo o Portugal, deveria pôr os olhos na dimensão recursos e como com escassez de recursos é possível fazer mais e melhor, como fez o Paulo. Mostrou-nos o que é viver exponenciando a dimensão humana. Portugal, todo o Portugal, deveria pôr os olhos na beleza da vida com sentido, com propósito, onde os outros, o contexto, importam e são determinantes para nos tornar melhores, como fez o Paulo. O Paulo foi sempre, em qualquer circunstância, um ganhador do Dakar e da vida.”

E mais, teria preferido, ainda que a título póstumo, que Marcelo Rebelo de Sousa tivesse anunciado, desde logo, uma condecoração precisamente pelas dimensões com que soube viver e dignificar a vida e Portugal: A dimensão risco, a dimensão escassez de recursos e a dimensão humana. E todas elas fazem do Paulo um ganhador.

Obrigado Paulo. Adeus Paulo. Partiste como guerreiro. Mas estarás sempre como guerreiro vivo na memória de todos. Vemo-nos em vídeo.