Querido Mundo,

Nasci num país onde gritar não se cobra, nem se paga. Dançar e cantar é permitido. E a ementa é à escolha do freguês. Leio a liberdade e a censura, vejo o didático e sinto
o que se meneia em solos moventes. Esta é a verdade que eu entendo, afortunadamente. A privação de liberdade nunca foi palpável para mim, conheço somente a incumbência de me dedicar à instrução, à absorção da Moral e à prática dos bons costumes, à compaixão e à bondade, à ética e ao respeito pelo próximo. Preceito estabelecido pelos meus queridos progenitores, que sempre planearam oferecer-me uma visão do Mundo como sendo algo cintilante mas sem peneiras.

A Escola esteve sempre ao meu alcance (houve dias que essa obrigatoriedade tanto me exaltou), o Hospital também (ainda que regido por processos morosos e desesperantes), os medicamentos, quando indispensáveis, sempre fizeram parte da cura (facilidade que não constitui uma realidade análoga a todos), as bibliotecas foram vítimas da minha gula livresca e nunca senti frio por falta de roupa para vestir. A solidez e coerência destas dinâmicas sempre foram certezas para mim, pouco valorizadas e tidas como idênticas para todos. Agora que cresci, a minha realidade é distinta, a minha visão é desilusão. Nada é equivalente para todos, nunca as oportunidades são lineares e a felicidade imparcial. Temo continuar a crescer a par do meu nó no estômago, quando paisagens de atrocidade e injustiça se desenrolam em frente ao olhar. Mas existe um fator que me oferece segurança de espírito: pertencer a uma comunidade que se chama União Europeia.

Nasci em Portugal. Membro da UE desde 1986, o meu país encontra-se inserido numa redoma de organização e princípios, regulamentos e procedimentos, comuns a 28
estados-membros. Não existe melhor impressão do que sentir-se o amparo e o conforto de nos encontrarmos no epicentro de uma comunidade unida pelos mesmos
valores e princípios, que se guia por regras e objetivos comuns. Saber que a liberdade impera, a monumentalidade da escolha é fundamental, o poder de voto é primordial,
ou os direitos humanos são o ritmo pelo qual marchamos, é um profundo suspiro de alívio. Querido Mundo, dou-te uma certeza, não conheço sensação igual à de vaguear
por estes países membros e sentir a confiança de estar em Casa. Uma União Europeia alargada é como uma casa com mais divisórias. É como um Palácio, o espaço é alargado mas a família é firme quanto à coerência das regras da Casa. É necessário manter a ordem com tanta gente e tanto espaço para coordenar.

Ainda assim, o meu sentimento não é de ligeireza ou refestelo a uma visão de asseverações. Já lá vai a minha adolescência ligeira e, hoje que a vida pede deliberações, resoluções e decisões, sinto o fardo do Tempo e do Espaço nos ombros. Os anos passaram, passam e irão continuar a passar.

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Sinto que, por mim, estão a passar a uma velocidade devastadora, com efeitos avassaladores. Para que lado me poderei eu virar? Beneficio de bastante oferta, mas
a escolha real não é simplista ou inconsequente. Acredito partilhar este sentimento com diversos cidadãos da União Europeia. O desespero da potencialidade
desperdiçada é o sentimento que nos atinge quando vemos chegar a hora da emancipação. A União Europeia tem tanto para nos oferecer. É uma verdade. Mas como posso eu usufruir desses direitos e cumprir esses deveres como cidadã-europeia? É o Livro do Desassossego. Estamos, cada vez mais cientes de que o mundo não é justo, íntegro ou harmonioso. O mundo não tem culpa. Quem tem culpa somos nós. Somos nós que o criámos. Mas a vida moldada pela desilusão em tão tenra idade irá determinar todo um futuro. Mudar este sentimento de desencanto é o desafio da União Europeia. Como? Apostem na proximidade do que nos aquece o coração.

Testemunho a largada de tão próximos amigos e amigas, a partir para lugares que não são perto de mim. Levam o meu coração e a minha esperança com vocês. Não será
isto o pior que está para vir? A desistência, a mágoa de deixar para trás. Mas começo a entender que Londres é ali ao lado e se quiser posso ir a Barcelona lanchar. E até
quero. Se calhar também pego na minha vida material e aposto na partida, largada, fugida. Mas sabes o que me falta, Mundo? Poder de compra. Poder de decidir se quero ficar no meu país ou noutro qualquer que me dê emprego, que me dê estabilidade, paz de espírito e tréguas nesta luta infindável. Será que podemos enviar lágrimas engarrafadas para todos os estados-membros? É o sentimento de perda dos mais queridos seres que tudo deixam menos a presença. Não quero ter que ir. Quero poder escolher se vou ou se fico.

Este é um dos desafios de uma União Europeia tão alargada. As fronteiras culturais não podem ser eliminadas, mas podem ser atenuadas. Para nos fazerem sentir sempre em Casa. E já que temos tanto em comum, era tão bom se nos pudessem aproximar mais um bocadinho e criassem uma rede de transportes barata e eficaz. Porque os jovens cá do sítio não têm dinheiro, mas têm muita vontade de abraçar quem foi levado pela necessidade. Os jovens cá do sítio sentem-se muito sortudos por pertencerem a uma comunidade que luta pelo império da liberdade, pelamonumentalidade da escolha, pelo poder de voto, pelos direitos humanos e pela justeza do julgamento. Por isso gostavam que fosse mais fácil movimentarmo-nos dentro deste grande Palácio. Temos línguas comuns, moedas comuns, bens comuns e valores comuns.

Falta-nos apenas acreditar que a União Europeia é a nossa Casa. Que pertencemos aqui, que devemos crescer no seu seio. Por isso, querido Mundo, sei que sou egoísta e injusta em sentir-me felizarda por estar nesta redoma. Vivo num dilema existencial por causa disso mesmo. Mas é preciso não desistir. Nem de nós próprios.

Atentamente me subscrevo,

Ana Margarida Meira