Título: Minha mulher, a solidão
Autor: Fernando Pessoa (organização de Manuel S. Fonseca)
Editor: Guerra&Paz
Páginas: 116
Preço: 55 euros

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Esta é a terceira de uma série de três antologias “temáticas” de textos de Fernando Pessoa editadas pela Guerra&Paz; o primeiro sobre viagens (O Livro de Viagem, 2009), o segundo, em 2014, sobre drogas (As Flores do Mal) e este, agora, Minha mulher, a solidão, “sobre sexualidade”. O sexo em Pessoa não é a mesma coisa que o sexo de Pessoa. Confusões deste tipo são muitas vezes feitas a respeito do grande escritor – como são feitas, mudados os nomes, a respeito de outros autores e noutras matérias. Não seria a primeira vez. João Gaspar Simões, na sua monumental e inevitável biografia de Fernando Pessoa, alicerça uma boa parte das suas teses sobre o escritor nessa ideia de que na sua obra este fazia “um pastiche genial de si próprio” (cito a partir da referência à edição comentada em “Notas a uma biografia romanceada”, de Eduardo Freitas da Costa) – tirando daí inúmeras ilações sobre uma vida que Gaspar Simões quis ver auto-retratada na sua literatura.

Minha mulher, a solidão (um verso de Pessoa) é uma compilação organizada por Manuel S. Fonseca que tem por declarado objetivo reunir o que o editor considera “os principais textos de Fernando Pessoa que têm por tema central a mulher e o amor”, nas palavras da sua apresentação (Toda a volúpia é mental). Dada a tentação de privilegiar um lado reality show quando se põe em evidência – direta ou indiretamente – a vida íntima de grandes figuras da literatura também na referida confusão poderia cair esta reunião de textos que têm em comum o retrato da “euforia sexual”. Nela, em todo o caso, podem cair os potenciais leitores destes supostos “conselhos a casadas, malcasadas e algumas solteiras”, que só muito parcialmente o são.

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O próprio título e as palavras introdutórias do editor M. S. Fonseca – perspicazes sob vários aspetos – deitam considerável água nesta fervura. Como diz, “da sexualidade do homem Fernando Pessoa (…) quase nada sabemos”. O próprio Pessoa notou, numa carta a J. Gaspar Simões em que fala de Freud, “o pouco que sempre me interessou a sexualidade, própria e alheia – a primeira pela pouca importância que sempre dei a mim mesmo, como ente físico e social, a segunda por melindre (adentro da minha própria cabeça) de me intrometer, ainda que interpretativamente, na vida dos outros”. Pessoa, já agora, reconhecia a importância de Freud, mas dentro de certos limites: “O freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. (…) Imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana (…) estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade, pois nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica (…) utilíssimo porque chamou a atenção (…) para o subconsciente e a nossa qualidade de animais irracionais”. O subconsciente, como diz mais sucintamente algures, todos sabemos que “é uma besta”.

Nos textos escolhidos pelo organizador desta antologia não há muitos assinados pelo chamado ‘ortónimo’ F. Pessoa: estes são, principalmente, algumas cartas a Ofélia Queiroz aqui incluídas, que de resto são os únicos que testemunham diretamente a vida do homem (mas testemunham?). O resto são criações literárias do próprio ou das criaturas criadas no seu “drama em gente”. Nesse teatro, falam os “personagens”. Todos os textos, salvo erro (não posso garantir, até porque infelizmente a origem dos textos selecionados quase nunca é identificada e não andei a verificar), são textos já publicados e portanto pouco acrescentam ao que já é conhecido (serão os “principais”?) – a não ser por estarem todos juntos e poderem evidenciar, como defende M. S. Fonseca, uma “unidade conceptual” conferida pelo “facto de (…) terem, subjacente, uma certa comunhão com o princípio platónico de que a verdadeira experiência é mental”. Não sei se Platão ou Pessoa estariam de acordo com esta formulação.

Minha mulher, a solidão pertence à categoria do “livro objecto”. Vem envolto num espalhafatoso aparato “fabril”, conceptual e tipográfico que em grande parte o define como mais e menos que um livro para ler. Inclui uma espécie de “segundo livro” em encarte designado um tanto enigmaticamente – ou sensacionalisticamente – por “livro concupiscente de corpo nu”. No “colophon” realça-se “a diversidade de papéis usados, dois para o livro com os textos sobre a mulher e o amor, o papel de jornal nos cadernos escandalosos e intempestivos, a variada estética adoptada para a paginação, a capa com a lombada executada com uma heterodoxa costura à vista, a presença da secretíssima pintura de Ana Vidigal, o poema de amor de tu e eu, de Eugénia Vasconcellos, querem ser os materiais diversamente equivalentes (…) à pluralíssima, e quase sempre paradoxal, sexualidade que transpira…”, etc. etc. (Este livro são dois). São protestos demais da senhora editora e o resultado não nos convence. Com a sua abordagem um tanto heteróclita e aproximativa de estéticas gráficas “de época” está longe de ser tão feliz como outras edições da Guerra&Paz. E, independentemente dos seus méritos próprios, a pintura de Ana Vidigal e o poema de Eugénia de Vasconcelos estão ali com um mero papel decorativo, que nada – “a meu ver (é sempre a meu ver)” – acrescenta ou sublinha de pertinente.

De caminho, com a devida vénia, aproveito para lembrar a existência do excelente estudo de José Barreto Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa (Ática, 2011), que recomendo e é uma boa companhia para este volume.

Miguel Freitas da Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor.