Há muito que não se via um Coliseu dos Recreios assim, histérico, no bom sentido da palavra. Aplaudido (várias vezes) de pé, com gritos e assobios, Ludovico Einaudi atuou perante uma sala completamente esgotada, esta quinta-feira. O mesmo aconteceu no Coliseu do Porto, na noite anterior. Já com mais de três décadas de carreira, não é a primeira vez que o compositor e pianista italiano atua entre nós, mas nunca tinha sido assim.

O concerto estava marcado para as nove da noite, o que em Portugal é cedo. Por isso não surpreenderam as longas filas que, à hora certa, ainda saiam pelas portas do Coliseu de Lisboa. Havia ali pessoas de todas as idades, a cumprir com o figurino estereotipado da música clássica, mas sobretudo muita gente nova, com hábitos de escuta, seguramente, de latitudes muito diferentes.

Vinte minutos depois da hora, lá se apagaram as luzes. Os músicos foram entrando, um a um, o último foi o compositor italiano. Dirigiu-se diretamente ao centro do palco onde estava o piano, cabeça baixa, um breve aceno ao público e sentou-se, de costas voltadas para a plateia. Na tela em fundo, os componentes animados da capa de Elements (2015), o álbum que é o foco central desta digressão.

Com o compositor eram seis em palco, e mais os instrumentos que os músicos. Às cordas do piano juntaram-se as do violino e do violoncelo, da guitarra elétrica e do baixo, mas também dos teclados e de outros efeitos especiais, onde se incluíam um serrote de metal e uma caixa com água. Tudo foi servido com grande detalhe, com todas as notas no sítio. Até no arranhar das cordas, o som esteve impecável.

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O concerto arrancou suave, “Night” foi logo o segundo tema, seguido pouco depois de “Petricor”, talvez os momentos mais fortes do último Elements. Sempre muito aplaudido pelo público, não lhe dirigiu uma palavra. Tal como num concerto de orquestra.

Mais à frente, a banda abandonou o palco e Ludovico Einaudi entregou-se ao piano, com a delicadeza de quem toca num objeto sagrado. Juntou quatro temas num só, encadeou melodias que não precisaram das partituras que ilustravam o cenário (o piano, mais concretamente). Quando terminou, rodou o corpo na cadeira e virou-se para a plateia. Foi aplaudido de pé e com estrilho. Agradeceu aquela noite e disse estar muito comovido com a notícia da morte de Prince, esta quinta-feira. “Ele era um génio”, afirmou. Dedicou-lhe a composição seguinte, o tema “Fly” do álbum Divenire (2006), mas ao contrário da versão gravada, a banda fez sair das cordas o som de um choro.

Os temas seguiram-se, a soar sempre muito precisos, da mesma forma que nos discos, mas amplificados na força e na melancolia. Aquela música, muitas vezes triste, contrastou permanentemente com o ar sereno do compositor e com os sorrisos trocados entre ele e a banda. Olhando para as expressões, não se viram lágrimas ali, pelo contrário, foram momentos introspetivos feitos numa interpretação feliz — e em que Ludovico Einaudi raramente fez de maestro.

E o mais impressionante é o rigor com que unem os elementos sonoros, eles estão por todo o lado, o segredo está em saber juntá-los. Mesmo nos momentos mais experimentais, onde usam um serrote ou uma placa de ferro mergulhada numa tina de água, aproveitando as diferentes ressonâncias, lá está, dos elementos.

O que se escutou a noite passada foi música feita com a precisão de uma fórmula de matemática, não que tivesse sido estanque ou rígida, mas porque foi pensada para ser assim, para tocar nas cordas certas de quem ouve, é esse o magnetismo que o público português terá descoberto na música de Ludovico Einaudi. Por isso foi sem espanto que se ouvia, nos corredores à saída, expressões como “isto é uma experiência espiritual”. E foi, como toda a música consegue ser, mas esta leva de avanço a delicadeza da estrutura clássica, que é naturalmente encantatória.

Quase duas horas depois, o pianista foi aplaudido de pé durante longos minutos, com muitos gritos e assobios e pés a bater no chão a pedir mais. Nem em espetáculos de bandas pop/rock consagradas é costume assistir a uma manifestação tão intensa. Ludovico Einaudi, uma figura calva e grisalha com sorriso de avô simpático lá regressa (com o tema título de Divenire), para pouco depois se despedir com um “Ciao Lisboa”. Tinham passado pouco mais de duas horas, eram 23h32.

ludovico einaudi, coliseu dos recreios

O Coliseu dos Recreios esteve esgotado para ver e ouvir o compositor italiano Ludovico Einaudi

Uma nota final acerca da audiência que esgotou o Coliseu de Lisboa — porque os espetáculos de música são feitos por quem atua e por quem assiste. Os concertos de música clássica merecem atenção. Não que esta música seja mais que qualquer outra, mas porque é feita de muitos silêncios. Apesar da tosse primaveril, o público foi relativamente disciplinado na conversa, mas ainda não aprendeu a desligar o flash dos telemóveis. Nesse capítulo, Lisboa deu um triste espetáculo.