Duas das bandeiras mais utilizadas pela defesa da Uber foram refutadas pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT): o facto de a empresa ser uma “plataforma tecnológica” não impede que seja considerada, do ponto de vista legal, um operador de transportes; e as entidades parceiras não podem, afinal, transportar passageiros ocasionais a um ritmo “frequente e de volume significativo”, de acordo com o que está escrito no parecer entregue ao Ministério do Ambiente.

“A plataforma tecnológica é apenas um meio instrumental do seu modelo de negócio, onde otimiza a prestação de serviços de transporte através da gestão em tempo útil da informação” (…) Isto significa que, para os efeitos legais pertinentes, a Uber tem de ser considerada um operador de transportes, não obstante que para o exercício desta função se socorra de uma plataforma tecnológica”, lê-se no parecer.

Esta “pronúncia”, pedida pelo governo em março deste ano, chegou às mãos do ministério tutelado por Matos Fernandes na semana passada. Já esta quarta-feira, no Parlamento, o presidente da AMT, João Carvalho, tinha resumido a principal conclusão do parecer: há uma decisão do tribunal que diz que a Uber está a atuar “fora da lei” e que deve ser executada. E só com uma mudança do quadro legal em Portugal é que o serviço pode ser legalizado, mas essa é uma iniciativa que pertence ao governo”.

No documento divulgado esta quinta-feira, e que terá também sido entregue aos representantes das associações de táxis, o regulador dos transportes responde quase ponto por ponto aos argumentos que têm sido apresentados pela empresa que liga motoristas privados a utilizadores.

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Sobre o argumento de que os parceiros da Uber, como os rent-a-car e as empresas de animação turística, exercem a sua atividade dentro daquilo que a lei já previa, o regulador dos transportes também afirma que tal não corresponde à verdade:

“Ou seja, se é verdade que as empresas de rent-a-car podem celebrar contratos de aluguer de veículos sem condutor, ou com condutor em circunstâncias especialmente previstas, não podem, face ao regime legal em vigor, realizar validamente, a título de prestação frequente e de volume significativo, o transporte remunerado de passageiros ocasionais. (…) É ainda importante salientar que o regime jurídico do rent-a-car proíbe, nos termos do n.º 3 do artigo 6º, a sublocação dos veículos alugados”, lê-se.

Ainda sobre o tema das rent-a-car, o regulador dos transportes diz ainda que a figura do “motorista de turismo” foi criada e prevista na lei como resposta ao crescente peso da economia de turismo no país, mas que, nos últimos anos, a falta de regulamentação deste serviço “deu azo a todo o tipo de abusos no aproveitamento do segmento”, que era “exclusivo dos táxis”.

“Nos últimos anos, a falta de uma regulamentação única no serviço de transporte de pessoas em veículos automóveis com lotação inferior a nove lugares tem vindo a dar azo a todo o tipo de abusos no aproveitamento deste segmento, nomeadamente por parte de agências de viagens e empresas de animação turística que têm vindo, na prática, a apropriar-se de um segmento de mercado originalmente exclusivo dos táxis, os quais, como se viu, se encontram sujeitos aos mais apertados requisitos, exigências e condições de acesso de mercado”, lê-se.

“Do que antecede resulta claro que a utilização de empresas rent-a-car, ou de quaisquer outras empresas de animação turística, ou de designação afim, como parceiros não confere legalidade ao modelo de negócio da Uber“, acrescenta o regulador.

A AMT explica ainda que a Uber atua no universo das “inovações paradoxais”, que “oscila entre a apetência para a novidade, própria da ‘cultura do efémero’, e a confiança quase espontânea e sem reservas que se instala entre desconhecidos”. Essa mesma confiança, diz o regulador, “poderá envolver riscos regulatórios na medida em que propicia o crescimento do poder de mercado, favorece a cartelização”, entre outros.

“A simbiose entre as componentes computacionais, sociológicas e organizacionais, com particular relevo nos algoritmos que conduzem ao ‘pricing’ aplicável a determinados serviços nos mercados de inovação suscita importantes riscos de cartelização a que as Autoridades de Concorrência devem estar cada vez mais atentas”, lê-se.

Regulador “aberto a inovações tecnológicas”

Perante o atual quadro legislativo, a AMT considera “indispensável que a Uber suspenda a sua atuação ilegal no mercado de transportes por táxi ou equivalente rent-a-car“, que “cesse a sua estratégia de se legitimar através de uma publicitação incisiva” e que “cesse igualmente a sua estratégia de reclamar um novo enquadramento regulatório, para depois se conformar com o mesmo”.

Apesar das conclusões apontarem para que deve ser a Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) – que interpôs a providência cautelar contra a Uber – a desencadear os mecanismos processuais para que a sentença seja executada, o regulador explica que “está naturalmente aberta a favorecer inovações tecnológicas que se traduzam em mercados com maior concorrência”, que acolham novos modelos de negócio.

“Existindo vontade de criar espaço no ambiente regulatório para uma hipotética viabilização da Uber em Portugal, há que alterar os diplomas com os quais o seu comportamento objetivamente conflitua e que são os diplomas relativos ao regime de acesso e exercício da atividade do táxi”, escreve o regulador.

Além disso, a AMT “está naturalmente empenhada em contribuir para a disseminação dos mercados de inovação tecnológica, uma perspetiva de abertura a todas as empresas que tenham capacidade para tanto”, lê-se no parecer entregue ao Governo. A AMT alerta, contudo, que a proposta de regulamentação entregue pela Uber não deve ser considerada porque é “inaceitável”.

A aprovação do regime regulatório proposto pela Uber, e que aliás foi entregue em resposta a um pedido feito pelo próprio regulador à empresa, “determina a coexistência na ordem jurídica portuguesa de dois regimes desiguais e desproporcionais de transporte de passageiros em veículos automóveis ligeiros, com níveis de exigência díspares, designadamente no acesso e exercício da atividade, na certificação dos motoristas, no licenciamento dos veículos, o que parece absolutamente inaceitável face aos princípios da igualdade e da justiça”.

No entanto, a AMT deixa uma porta aberta: “Na realidade, nada obsta que não só novas empresas, mas também empresas tradicionais de táxi inspiradas nas potencialidades que a tecnologia proporciona, criem modelos de negócio competitivos que favoreçam uma mobilidade eficiente, maximizando a utilidade para cidadãos e empresários”, lê-se.