Título: “O Segredo da Modelo Perdida”
Autor: Eduardo Mendoza
Editora: Sextante

Um espanhol urde uma trama um tanto pícara, paródia de um género literário famoso, com dois inadaptados nos papéis principais: se esse espanhol não é Cervantes, pelo menos fazem-no; daí que Eduardo Mendoza tenha ganho o prémio Cervantes com este O Segredo da Modelo Perdida.

A paródia já não atinge o altivo romance de cavalaria mas o policial do submundo; a personagem principal já não tem o entono fidalgo do lunático Quijada, é antes um trangalhadanças feito detective à força e em causa própria, para poder voltar em paz ao manicómio de que o querem tirar, acusado de matar uma modelo. Tem personagens incomparavelmente mais estúpidas, igual galeria de engulhos do arco-da-velha e idealismo em inversa medida de todo aquele que alimenta D. Quixote.

É que o romance de Mendoza tem boa parte da sua graça no prosaico dos seus ambientes; a personagem principal poderia ser o arquétipo do palhaço pobre, não pela simplicidade das suas graças, mas de facto pela pobreza da sua condição. Conhece prostitutas feias e baratas, bandos de travestis e restaurantes falidos, passeia por uma Barcelona pré-turística, suja e descuidada, entre a mais certificada gandulagem. Mesmo a riqueza da sua linguagem (num estilo um tanto irónico, como se gozasse com as pretensões do seu próprio tom) é maquilhada com o vernáculo e as expressões populares de todo o texto. As personagens também exibem a sua baixeza moral a cada passo, traem-se e esquecem-se como quem respira, e só não são piores quando a preguiça ou a cobardia os salvam de vícios mais profundos.

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Ora, num mundo tão rasteiro, também o romance não podia voar muito alto. Não que o livro ofenda, mas voa raso; Mendoza decidiu fazer comédia em todos os planos: na linguagem, no enredo e até nas personagens. A junção, porém, acaba por tirar certa graça ao livro. Da mesma maneira que podemos criar humor de um homem a levar com uma tarte na cara, mas não de uma tarte a levar com outra tarte, não podemos ridicularizar todos os momentos e querer que alguns deles passem por insólitos. O riso vem do insólito no meio da normalidade, não do insólito no meio do insólito.

Mendoza acaba, assim, por ter demasiada graça. Talvez a linguagem seja o caso mais nítido: volta não volta, Mendoza encaba uma piada, um laivo de nonsense, um dichote mais alarve, no meio da narrativa. Não para contar nada, mas como quem não resiste a um aparte. As anedotas, porém, têm uma Natureza contrária às ambições da literatura: uma anedota tem graça uma vez, a literatura, mesmo a cómica, deve sobreviver à repetição. Mendoza tem muitas graças, mas não tem graça suficiente para resistir a uma segunda leitura: para isso é preciso uma densidade, uma penetração de análise, uma construção narrativa que a anedota, construída para fazer rir na última frase, não tem.

O mesmo se pode dizer do enredo: Mendoza parece coser a sua história com as piores linhas de P. G. Wodehouse; a futilidade das personagens do inglês contaminava o enredo, como a estupidez das personagens de Mendoza contamina o enredo dele; mas o que P. G. Wodehouse compensava com a prosápia, o que ganhava com a pose de tolo, Mendoza perde com a paródia. Este é um policial sobre a morte de uma rapariga que aparece a meio do livro; e se a própria ideia de paródia permite e até obriga a que se ridicularizem certas cenas típicas de policial – os diálogos de pistas, as organizações vagas, o clima conspirativo… – não permite que se fraqueje no cerne do mistério. A natureza da paródia não passa por fazer uma má versão do visado; passa por fazer de uma boa versão uma versão ridícula; com os lugares comuns, mas não com os lugares-comuns mal postos – no máximo, com os lugares-comuns demasiado bem-postos.

As personagens têm o arcaboiço exacto para a paródia: são burlescas, quase personagens de teatro de revista, postas em situações que não desejaram e demasiado imbecis para resolverem os seus problemas de uma maneira sensata. A graça, porém, estaria em resolver situações sensatas de uma maneira louca, ou situações loucas de uma maneira sensata. Situações loucas resolvidas de uma maneira louca evoca o célebre princípio matemático: menos com menos é mais mas neste caso não melhor; loucura com loucura também corrobora o princípio: dá apenas um romance normal.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.