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55 anos do crime que imortalizou Truman Capote

Um assalto falhado e 4 assassinatos. Foi este o balanço do famoso crime, no Kansas, a 15 de novembro de 1959. Capote agarrou na história e escreveu um dos mais memoráveis livros: "A Sangue Frio".

Domingo, 15 de novembro de 1959. Nancy Clutter, uma menina de 16 anos, escrevia no diário pela última vez. “Jolene K. veio cá a casa e mostrei-lhe como se faz uma tarte de cereja. Ensaiei com a Roxie. Bobby esteve cá e vimos televisão. Foi embora às onze”. Foi com estas palavras que pintou a última noite da vida dela. Na madrugada desse domingo, dois homens entrariam na casa da família Clutter e matariam os quatro elementos que lá viviam.

Nancy Clutter era admirada em Holcomb, uma terra no interior do Kansas. A adolescente era uma aluna distinta, a líder da turma na escola e pertencia à Liga Metodista dos Jovens, a religião seguida pela família Clutter. Nancy era uma cavaleira de alto gabarito, tocava maravilhosamente piano e clarinete e ganhava sempre prémios na feira anual do condado, nos campeonatos de pastelaria, conservas, trabalhos de agulha e decorações florais. O caráter era notável. Diziam que o herdara do pai, Herb Clutter, um homem de 48 anos que começou de baixo até ser um dos mais influentes da comunidade. Não bebia e não fumava. Era admirado e respeitado.

Nessa manhã de domingo, enquanto Nancy ensinava Jolene a fazer a famosa tarte de cereja, que lhe valera alguns prémios e a boa fama na comunidade, Perry Smith esperava por um amigo no restaurante Little Jewel. Ao pequeno-almoço tomou três aspirinas, uma cerveja gelada e devorou cigarros Pall Mall. Perry não gostava de café. Enquanto a espera se alongava, este homem olhava para um mapa do México em cima da mesa, com os olhos de quem planeava o próximo destino. Richard Hickock, o amigo, estava atrasado. “O meu velhote andava por ali e eu não queria que ele me visse a trazer a carabina”, justificar-se-ia mais tarde. Hickock e Perry conheceram-se na prisão, no Kansas, e ficaram amigos desde então. Foi aí que um deles teve conhecimento de que Herb Clutter teria um cofre recheado na quinta River Valley, onde vivia com a família. O plano estava traçado: encontrar o cofre e não deixar testemunhas…

Havia sangue no corpo da tal menina bonita, magra e ágil, que tinha os olhos escuros e transparentes, como a cerveja preta vista contra a luz. Havia sangue nas paredes. Nancy estava irreconhecível. 

Na segunda-feira, 16 de novembro, após a noite sangrenta de domingo, Nancy Ewalt (não confundir com Nancy Clutter) chegou à quinta para acompanhar a família Clutter nas cerimónias metodistas. Achou estranho ninguém responder à campainha. A menina Ewalt e o pai dela deslocaram-se então à residência dos professores, onde viva Susan Kidwell, filha da professora de música. Susan era a confidente de Nancy Clutter. Depois de nada conseguirem saber por ali, as duas meninas decidiram voltar a River Valley. Entraram em casa e aventuraram-se pelo andar de cima, em busca do quarto da amiga. O som dos próprios passos metia-lhes medo no meio daquele silêncio todo.

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A imagem que a seguir tiveram, no quarto de Nancy Clutter, fê-las gritar e correr dali para fora. Havia sangue no corpo da tal menina bonita, magra e ágil, que tinha os olhos escuros e transparentes, como a cerveja preta vista contra a luz. Havia sangue nas paredes. Nancy estava irreconhecível. “Aquilo era um espetáculo horrível. Aquela rapariga adorável… ninguém a poderia reconhecer”, afirmou depois o xerife Robinson. A menina, atada nos pés e mãos, levou um tiro na parte de trás da cabeça, com o cano da carabina a poucos centímetros.

O corpo de Bonnie Clutter (45 anos), a mãe de Nancy, estava igualmente mal tratado. Foi encontrado ao fundo do átrio, também no piso de cima. Não havia vestígios do crime, não havia cápsula vazia da arma. Nada. Já com o xerife e o xerife-adjunto, os corpos de Herb Clutter e Kenyon foram encontrados na cave, na sala de jogos. O rapaz de 15 anos estava num sofá, preso aos braços do sofá. Era quem estava menos irreconhecível. Numa outra divisão estava o pai. Neste caso o cenário era ainda mais agressivo. Herb Clutter fora suspenso pelas mãos, depois cortaram-lhe a garganta e deram-lhe um tiro na cabeça. Terá sido torturado? É possível. Afinal, os dois assaltantes procuravam um cofre que não existia.

O primeiro suspeito foi Bobby, o namorado de Nancy, que o pai não apreciava por ser católico. O rapaz havia saído da casa dos Clutter perto das onze horas da noite. Mas não havia sido ele o autor daquele crime. A investigação policial não estava a ir num bom rumo, mas o vento mudaria. Floyd Wells, o homem que falou aos dois assaltantes da existência do cofre, levantou o véu e revelou o plano a um funcionário da prisão do Kansas. A polícia deslocou-se depois a casa dos pais de Hickock e por lá encontraram a arma do crime.

Hickock e Perry, que apenas roubaram pouco mais do que uns binóculos e cerca de 50 dólares, acabariam detidos em Las Vegas, a 30 de dezembro, e seriam levados de volta para o Kansas. A sentença seria a morte por enforcamento. E assim foi.

Este crime aconteceu há exatamente 55 anos. As palavras, as descrições e as conclusões neste texto são, na maioria, resgatadas do famoso livro de Truman Capote, “A Sangue Frio”, que demorou seis anos a ser escrito. O jornalista acompanhou a investigação, falou com a comunidade, teve acesso ao diário de Nancy Clutter e construiu uma relação com os homens no corredor da morte. Capote vangloriou-se com o estilo do livro, de caráter não-ficcional. Era a elevação do jornalismo literário.

QUEM ERA TRUMAN CAPOTE?

Escritor e jornalista. Apaixonou-se pelas palavras cedo. Enquanto escritor, escrevia a primeira versão a lápis. A obsessão que tinha com a colocação das vírgulas irritava-o. Considerava-se um estilista. O célebre “Breakfast at Tiffany’s” (1958) foi porventura o grande primeiro sucesso de Capote, graças à adaptação para filme, abrilhantado por Audrey Hepburn e George Peppard. Mas nada se compararia com o “A Sangue Frio”, que este sábado, dia 15 de novembro, lembramos. Também esta obra teve direito a navegar para os cinemas. Este último livro, que colocou o jornalismo literário no mapa (ou voltou a colocar), valeu-lhe a imortalidade. Foi um dos mais reputados escritores do século XX.

Intrigante, com carisma, jeitos e voz afeminados, Capote dificilmente passava despercebido. Nasceu em Nova Orleães, Louisiana, a 30 de setembro de 1924. Truman Streckfus Persons viveu uma infância complicada, solitária, que culminaria no divórcio dos pais. Em 1932 mudou-se para Nova Iorque para viver com a mãe e o padrasto, Joe Capote, que o adotaria e lhe emprestaria o nome (1935): Truman Garcia Capote. Foi um estudante mediano. O dom para contar histórias e entreter as pessoas foi-lhe conhecido cedo. A baixa estatura, o tom de voz, os tais jeitos, tudo servia para ser o patinho feio e o alvo escolhido pelos outros na hora de gozar com alguém. Esta montanha-russa de eventos e realidades obrigá-lo-iam a repetir o 12.º ano.

"[Comecei a escrever] quando ainda era criança, tinha uns dez ou onze anos. (...) Havia no jornal uma página infantil que fazia concursos de escrita e de desenho. (...) O prémio do concurso de contos era um pónei ou um cão, já não me lembro, mas eu queria-o desesperadamente."
Truman Capote, em 1957

“[Comecei a escrever] quando ainda era criança, tinha uns dez ou onze anos. (…) Havia no jornal uma página infantil que fazia concursos de escrita e de desenho. (…) O prémio do concurso de contos era um pónei ou um cão, já não me lembro, mas eu queria-o desesperadamente. Tinha vindo a reparar nas actividades de alguns vizinhos que andavam a preparar alguma, portanto escrevi uma espécie de roman à clef chamado Old Mr. Busybody e concorri com ele ao prémio”, pode ler-se no livro Entrevistas da Paris Review, uma seleção e tradução de Carlos Vaz Marques. Esta entrevista aconteceu em 1957.

E continuou: “A primeira parte saiu num domingo, sob o meu nome verdadeiro de Truman Streckfus Persons. Só que houve alguém a reparar que o que eu estava a apresentar como ficção era um autêntico escândalo local e a segunda parte nunca chegou a ser publicada. Evidentemente, não ganhei coisa nenhuma”. O olhar e a escrita não-ficcional, o talento para descrever o que o rodeava, cedo abraçou o estilo do futuro escritor.

https://www.youtube.com/watch?v=7278BPpa-jw

Começou por escrever contos. Teve a certeza de que queria ser escritor com 17 anos. “É claro que nenhum escritor esquece a primeira vez em que lhe aceitaram um texto. Mas um belo dia, quando tinha 17 anos, vi aceites o meu primeiro, segundo e terceiro textos, tudo na mesma entrega matinal do correio. Ó, tenho de lhe dizer que ficar tonto de entusiasmo não é uma mera frase”, pode ler-se no mesmo livro.

As referências de Capote passavam por Faulkner, Welty, McCullers e Katherine Anne Porter. E hábitos enquanto escritor? “Sou um escritor completamente horizontal. Não consigo pensar a não ser que esteja deitado, seja na cama ou esticado num sofá e com um cigarro e um café à mão. Tenho de estar sempre a dar baforadas e a bebericar”, lê-se no livro de Carlos Vaz Marques. “À medida que a tarde avança, vou passando do café para o chá de menta, o xerez e o martini. Não, não uso máquina de escrever. Não no princípio. Escrevo a minha primeira versão a lápis. (…) Vejo-me a mim próprio sobretudo como um estilista, e os estilistas podem tornar-se notoriamente obcecados com a colocação de uma vírgula ou com o peso de um ponto e vírgula. Obsessões deste tipo, e o tempo que gasto com elas, irritam-me para lá dos limites”.

"Sou um escritor completamente horizontal. Não consigo pensar a não ser que esteja deitado, seja na cama ou esticado num sofá e com um cigarro e um café à mão. Tenho de estar sempre a dar baforadas e a bebericar"
Truman Capote, em 1957

Nesta entrevista curiosa, Capote revelou ainda um outro lado não muito conhecido: o da superstição. “Creio que o meu lado supersticioso poderia ser classificado como uma excentricidade. Tenho de somar todos os números: há pessoas a quem nunca telefono porque a soma do número delas resulta num número de azar. Ou então não aceito um quarto de hotel pela mesma razão. Não tolero a presença de rosas amarelas — o que é triste porque são as minhas flores preferidas. Não aceito três pontas de cigarro no mesmo cinzeiro. Não viajo num avião onde estejam duas freiras. Não começo nem acabo nada a uma sexta-feira.”

“Creio que o meu lado supersticioso poderia ser classificado como uma excentricidade. (…) Não tolero a presença de rosas amarelas — o que é triste porque são as minhas flores preferidas. Não aceito três pontas de cigarro no mesmo cinzeiro. Não viajo num avião onde estejam duas freiras. Não começo nem acabo nada a uma sexta-feira.”

Capote dizia-se especial e, por isso, seria imperioso ter uma vida especial. Não era homem de ficar sentado num escritório à espera que o tempo passasse. Mas garantia que teria sucesso em qualquer profissão. “Sempre soube que queria ser um escritor e que queria ser rico e famoso”, pode ler-se num texto do New York Times, que noticiava a morte do escritor em agosto de 1984.

Pelo meio, algures em 1948, Capote conheceu Jack Dunphy, um dançarino da Brodway e escritor, com quem teria uma relação amorosa até aos anos 70. Dunphy era o oposto de Capote: discreto, introvertido e reservado. Por essa razão, viveu muitas vezes na sombra do companheiro. Até a nível financeiro, quando a vida profissional tremeu, Capote ajudou-o. O autor de A Sangue Frio chegou até a comprar duas casas em Long Island — uma para cada um. Também na Suíça, nomeadamente em Verbier, tiveram uma habitação onde passaram uma boa parte da década de 60. A relação arrefeceu nos anos 70 e 80, quando Capote abusava do consumo de substâncias ilícitas. O amor acabou, mas manteve-se a amizade. Foram 35 anos a respirar o mesmo ar no mesmo metro quadrado. Dunphy morreria de cancro, em Nova Iorque, em abril de 1992.

4 fotos

A estreita relação com as celebridades funcionou como um trigger na mente de Capote. Publicar segredos e histórias que nunca haviam visto a luz do dia era aliciante. Era irresistível: escreveria um livro. O andamento da obra, já prometida ao público com o nome Answered Prayers, estava lento. Para agarrar e não deixar arrefecer o interesse das pessoas, Capote permitiu que a revista Esquire publicasse uma parte da obra. A decisão revelou-se catastrófica para a vida social que o escritor cultivou, pois num dos excertos, La Cote Basque, de 1965, contou vários segredos de amigos próximos. Esses companheiros da vida boémia, quais animais feridos, acabariam por virar-lhe as costas. Capote mostrou-se surpreendido e magoado pela reação.

Capote morreu aos 59 anos, há precisamente três décadas. Longe do glamour com que pautou a vida, sem estar rodeado das estrelas e celebridades, como tanto gostava. A Sangue Frio trouxe-lhe fama, dinheiro e um lugar de destaque na sociedade norte-americana, mas o escritor não seria mais a mesma pessoa depois desse livro. O consumo de álcool, drogas e tranquilizantes agravou-se. Talvez a obsessão pelo Pulitzer, que nunca chegou, possa ajudar a explicar o descalabro. Curiosamente, Harper Lee, uma das grandes amigas do escritor, ganhou o direito a essa distinção com To Kill a Mockingbird, em 1960. Algumas teorias da conspiração atribuem a autoria desse livro a Truman Capote. Irónico, hein?

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