Era manhã cedo, pelas 8h20, quando os funcionários da Eletricidade da Madeira o encontraram. Naquela zona, onde a casa mais próxima fica a um quilómetro e onde a estrada de terra batida encontra um fim, estava o pequeno Daniel, de ano e meio. A roupa molhada, o corpo frio demais e ninguém por perto. Era o menino que há dois dias a polícia procurava após um misterioso desaparecimento da casa de família. Seis meses depois, a PJ desvendou o mistério: Daniel não tinha desaparecido. A mãe vendera-o a alguém que acabou por abandoná-lo, temendo ser descoberto.

O caso aconteceu no início de 2014. Segundo a acusação do Ministério Público do Funchal, a que o Observador teve acesso, Lídia Freitas, 26 anos, vivia com o companheiro e os dois filhos menores, quando conheceu outro homem. O facto de o filho ser “louro de olhos verdes” tornava, do seu ponto de vista, a criança mais desejável por alguém que não conseguisse ter filhos. Por isso decidiu vender o pequeno Daniel. “Dadas as difíceis condições de vida em que a família vivia e o facto de querer mudar de vida e viver com outro homem, a arguida engendrou o plano de vender o seu filho Daniel”, acusa o Ministério Público.

“Dadas as difíceis condições de vida em que a família vivia e o facto de querer mudar de vida e viver com outro homem, a arguida engendrou o plano de vender o seu filho Daniel”, acusa o Ministério Público.

A Polícia Judiciária não conseguiu descobrir com quem Lídia falou. Mas descobriu que terá havido um intermediário que lhe encontrou alguém interessado no negócio e que estaria disposto a pagar entre 30 mil a 125 mil euros. Uma fortuna, para alguém a viver em precárias condições. Seria um comprador que não podia ter filhos e que estava disposto a comprar um.

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Lídia ainda deixou passar o Natal de 2013 para pôr o seu plano em marcha. A ideia era fazer com que Daniel desaparecesse misteriosamente. Durante o seu desaparecimento, seria levado e nunca mais seria encontrado. Nem por familiares, nem pelas autoridades.

Primeiro, a mãe de Daniel pensou em fazer o filho desaparecer da casa onde residiam — a casa dos pais do companheiro em Lombo das Laranjeiras, na Calheta. Mas depressa percebeu não ser uma boa ideia. Também na zona da casa do homem que conhecera, e com quem mantinha um relacionamento, em Lombo da Velha, Prazeres, podia levantar suspeitas. Foi, então, que decidiu telefonar a um tio e levá-lo a convidar a sua família para almoçar na casa dele.

A família chegou à casa do tio Vicente pelas 11h30. Ali, no Estreito da Calheta, pouco se vê à volta da casa. Há terrenos agrícolas a perder de vista. Muitos com grandes inclinações. A estrada acaba ali e conduz apenas a outras duas residências. Uma está desabitada e outra é dos avós de Lídia, que também estavam no almoço. Ao lado da casa há, ainda, uma pocilga. Seriam as condições ideais para alegar um acidente como estando na origem do desaparecimento da criança. Pelo menos foi o que Lídia pensou.

12 anos

Doze anos é o máximo previsto para um pena de prisão por tráfico de seres humanos quando há uma intenção lucrativa. O mínimo é três anos.

Código Penal

Estavam onze pessoas à mesa entre donos da casa, filhos, amigos e a família de Lídia. Pelas 13h30 já quase todos se tinham levantado e dado o almoço por terminado. Os avós de Lídia saíram e regressaram a casa, metros acima. Houve um tio dela que saiu com a namorada para irem à pesca. Mas Lídia, o marido e os filhos mantiveram-se por ali. Ele ficou na sala com o tio, as mulheres tratavam da louça e as crianças estudavam. Foi neste momento que Lídia pegou no filho mais novo, Daniel, e o levou para a rua. Aqui estaria alguém a quem o entregou. Alguém que as autoridades nunca conseguiram identificar.

Já de regresso a casa, Lídia tentou algumas manobras de distração. Sugeriu que fossem ver as cabras. Tentou ganhar tempo para, depois, se queixar. E foi o que fez, minutos depois. Onde está Daniel?, interrogou. Nunca mais o encontraram.

Eram 15h49 quando a prima de Lídia, de 19 anos, telefonou para o INEM a dar conta do desaparecimento do menino de um ano e sete meses. Em minutos, a casa do tio Vicente estava rodeada de polícias. Havia elementos da PSP, dos bombeiros e os cães da GNR farejavam todos os terrenos à procura da criança. Nada.

Lídia desdobrou-se em declarações à comunicação social. A fotografia de Daniel correu todos os jornais e televisões. Todos o procuravam. Mas ninguém o encontrava. Parecia que a criança se tinha evaporado.

daniel

Uma das imagens de Daniel difundida em janeiro de 2014, logo após o desaparecimento

Três dias depois, Daniel seria encontrado a cerca de 200 metros da casa do tio Vicente, em Levada Nova. Um local isolado, onde existe uma levada, e onde os técnicos da Eletricidade da Madeira se deslocaram para consertar uma série de postes de alta tensão. Duas semanas depois, a mãe levava-o a um programa de televisão para contar a história do seu desaparecimento.

Quem deixou Daniel naquele local fez uma cama de fetos secos, mesmo por cima de um buraco de 80 centímetros de altura, apenas atravessado por um pequeno tronco. O Ministério Público acredita que aquele buraco podia “engolir” o pequeno Daniel e que terá sido intencional. Perto estavam pegadas de um homem. A poucos metros estava a chucha de Daniel. “Quando foi encontrado, o Daniel tinha a roupa molhada, apresentava hipotermia (35,4º, à entrada da unidade de saúde), as mãos apresentavam sinais de exposição ao frio durante algumas horas, os pés apresentavam-se enrugados devido à humidade”, descreve a procuradora do Ministério Público. O bebé ficou internado durante cinco dias.

“Quando foi encontrado, o Daniel tinha a roupa molhada, apresentava hipotermia (35,4º, à entrada da unidade de saúde), as mãos apresentavam sinais de exposição ao frio durante algumas horas, os pés apresentavam-se enrugados devido à humidade”, descreve a procuradora do Ministério Público.

Daniel foi devolvido aos pais. Mas nunca as autoridades se convenceram que a criança tinha passado três dias ali. Fisicamente seria quase impossível resistir ao frio e à fome tanto tempo. Mas os pais mantinham a tese do desaparecimento acidental. Estas suspeitas iriam adensar-se meses depois, já Lídia vivia com outro homem, quando ela se deslocou à polícia para apresentar uma queixa por alegada violência doméstica.

O ex-companheiro, pai de Daniel, foi chamado a prestar declarações. Ele que chegou a ser apontado como culpado do desaparecimento da criança, por ter já um processo em tribunal por abuso sexual de uma menor. As declarações azedaram e foram ditas palavras suspeitas.

21 de junho de 2014. Seis meses depois do desaparecimento, Lídia e o ex-companheiro foram levados pela PJ. Foram sete horas de interrogatório. Primeiro um, depois outro, e, mais tarde, os dois. Lídia acabou por confessar que tinha raptado o filho e que queria vendê-lo. Precisava de dinheiro. Acabou detida na cadeia de Cancela até ser presente a um juiz — que a libertou, mas sob obrigação de não sair da Madeira e de se apresentar na PSP. Os filhos são entregues ao pai.

Ao então companheiro viria a proferir uma versão diferente daquela que se lê na acusação. Disse que vendeu a criança por 125 mil euros para pagar o tratamento da filha mais velha — com problemas cardíacos. Só não disse com quem fez o negócio. Também contou que os compradores seriam um casal emigrado na América do Sul. Mas a PJ nunca conseguiu confirmar estas informações.

8 anos

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É a pena máxima prevista por lei para o crime de rapto. O mínimo são dois anos de cadeia.

Código Penal

O Ministério Público acusa-a de rapto e de tráfico de seres humanos. A procuradora acredita que agiu em “conluio com pessoa ou pessoas que não foi possível identificar (…) interessada em adquirir um filho por meios económicos”. E só não concretizou essa intenção “devido ao facto do ou dos cúmplices da arguida se terem acobardado face à dimensão e prontidão da atuação policial”.

A acusação pede que Lídia seja julgada em tribunal coletivo. Até lá, corre o prazo de abertura de instrução, que visa levar o caso a um juiz de instrução para confirmar se há elementos de prova suficientes para levar a arguida a julgamento. Ao que o Observador apurou junto de fonte judicial, a defesa de Lídia ainda não pediu a abertura de instrução. O prazo de 20 dias está prestes a acabar.