Em 2010, pouco depois de ser eleito como presidente do PSD, Pedro Passos Coelho foi apresentado a Angela Merkel numa reunião do Partido Popular Europeu (PPE). “So you are the mister nice guy from Portugal”, disse-lhe Merkel depois do cumprimento formal. A chanceler louvava assim a posição do líder social-democrata, que ia apoiando os pacotes de austeridade do Governo liderado por José Sócrates — que meses mais tarde acabaria com o chumbo do PEC IV no Parlamento e com um resgate financeiro a Portugal. Seis anos depois deste encontro, a chave da economia e da disciplina orçamental na Europa ainda pertence à chanceler, mas a sua posição política dentro e fora do seu país tornou-se mais frágil devido à polémica abertura de fronteiras aos refugiados e em Portugal há um Governo com uma cor política diferente que procura novas alianças.

Marcelo Rebelo de Sousa vai este domingo a Berlim visitar a mulher que durante três anos consecutivos, entre 2010 e 2013, foi escolhida como a mais poderosa da economia portuguesa pelo Jornal de Negócios. “Merkel é a face da ingerência externa num país sob resgate” justificava o jornal da edição de 2011. O texto continuava assim: “Ela é a Alemanha, ela é os credores, ela é a UE, ela simboliza o ‘poder externo’, que não elegemos, mas a que obedecemos. Portugal está à mercê. Para o bem e para o mal. E Merkel é o paradoxo de ser tudo isto sendo ela própria muito pouco.” Ninguém em Portugal escolheu Merkel. Não haverá outros políticos estrangeiros com tanta influência no país ao longo dos últimos anos.

O Presidente da República já admitiu publicamente que vai falar com o Governo alemão sobre as sanções que pairam sob Portugal e Espanha. “Penso que Berlim, a Alemanha, que tem muita influência, na altura devida deve jogar com toda essa influencia para não aplicar sanções nem a Portugal nem a Espanha”, afirmou o Presidente, explicando este é “um tema fundamental” nesta visita. Esta prática de consultar Berlim em altura de necessidade tornou-se uma rotina nos últimos seis anos, altura em que Portugal se viu a braços com uma crise financeira que levou à adoção de um memorando de entendimento.

Mas até aí, foi uma relação equilibrada. “Há duas fases distintas na relação entre Portugal e a Alemanha. Antes e depois de 2010. Antes de 2010, quando a chanceler vinha a Portugal nem merecia atenção dos meios de comunicação e era um parceiro importante, mas não era o principal. Com a crise internacional e o agravamento da crise na Grécia, a Alemanha passou a ter um papel essencial e foi um apoio fundamental na negociação do último PEC“, diz ao Observador uma fonte do antigo gabinete de José Sócrates. O ex-primeiro-ministro e Merkel “eram amigos”. Já se conheciam quando ambos eram ministros do Ambiente. E ascenderam a líderes do Governo nos seus países no mesmo ano. A “excelente relação”, segundo a mesma fonte, traduziu-se depois em investimento para o país com o desenvolvimento da presença da Autoeuropa e da Siemens.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3 fotos

Se algum dia se chegou a tratar de uma relação de iguais, com a crise, a Alemanha assumiu uma posição de supremacia não só em relação a Portugal, mas em toda a zona euro, nomeadamente com as intervenções do ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble. Em janeiro, segundo relata o livro “Resgatados”, da autoria de David Dinis e Hugo Filipe Coelho, Sócrates enviou alguns dos seus principais conselheiros a Berlim e conseguiu apoio político, mas só se o orçamento resistisse ao crivo de Bruxelas. A 2 de março, Merkel chamou Sócrates a Berlim e reiterou o seu apoio, mas o plano não resistiu ao Parlamento português. “Até aí era uma relação normal, depois houve uma mudança brutal. A Alemanha achou o chumbo do PEC IV um absurdo”, acrescentou a mesma fonte que integrou o gabinete do ex-primeiro-ministro.

Publicamente, depois da demissão de José Sócrates, Merkel não mudou de atutude. “Portugal apresentou um programa muito corajoso para os anos 2011, 2012 e 2013. É bastante apropriado. Lamento profundamente que não tenha encontrado uma maioria no Parlamento”, afirmou a chanceler, acrescentando ainda que estava “grata” a Sócrates. Mas o amuo não terá durado muito, segundo fonte do Partido Popular Europeu.

A política muda em Portugal, mas a Alemanha mantém-se

“Em 2011, quando fizemos o pedido de assistência financeira, Merkel dava indicações não só a nível interno para o Bundestag aceitar, mas também para Portugal cumprir e para o resto da Europa. Depois desinteressou-se de Portugal porque o Governo português queria fazer mais do que estava no memorando“, afirma António Goucha Soares, professor do ISEG e autor do livro “Euro – E se a Alemanha sair primeiro?”. Para Goucha Soares, a Alemanha assumiu uma narrativa da crise em toda a Europa que lhe era conveniente, usando Portugal para lhe dar legitimidade. O autor defende que não foi o desleixo dos países do Sul que causou a crise do euro, mas sim o desequilíbrio do crescimento da Alemanha em relação aos restantes parceiros da zona euro, que fez valorizar a moeda única.

Depois das eleições que elegeram Pedro Passos Coelho, Merkel continuou a acompanhar “com atenção” a evolução trimestral do país, olhando para as contas, e proferindo “palavras de incentivo”, diz uma fonte do Partido Popular Europeu. “Mas Merkel percebeu a certa altura que não era preciso dizer nada. Continuou a manifestar-se de forma pública, mas também em privado, mostrando Portugal como um exemplo face à Grécia“, explica a mesma fonte, dando conta do que passava nas reuniões dos líderes de centro-direita que antecedem tradicionalmente todas as reuniões do Conselho Europeu.

Passos Coelho visitou a Merkel em diversas ocasiões durante o seu mandato, com a primeira a acontecer logo em setembro de 2011. O tema da reunião foi os eurobonds e possível inscrição do limite do défice na Constituição, temas em que o então primeiro-ministro concordou com a homóloga alemã. O português disse mesmo que não se podia olhar “para um princípio de obrigações europeias como uma forma de resolver os problemas dos que têm excesso de dívida”. Repetiu a visita a Berlim em 2014, antes das eleições europeias, para discutir a saída do resgate. “A Alemanha apoiará qualquer decisão que o Governo [português] tomar. Nós sempre apoiámos Portugal e vamos continuar a fazê-lo. E vamos esperar pela altura em que a decisão vai ser tomada, mas penso que o contexto é muito positivo”, afirmou a chanceler alemã na altura.

3 fotos

“É simbólico que Pedro Passos Coelho se tenha dirigido a Berlim sempre que havia uma decisão importante a tomar, era como se houvesse um pedido prévio de autorização. Merkel teve influência nas medidas, mas a responsabilidade é partilhada com o Governo“, diz a eurodeputada Marisa Matias ao Observador, referindo que a perspetiva alemã da crise foi “devastadora” para os países intervencionados. A eurodeputada refere que durante anos, em Bruxelas, foi questionada sobre a posição de bom aluno assumida por Portugal, embora a “lógica de aceitação” se tenha estendido a todas as decisões do Conselho Europeu.

Antes deste episódio, a influência alemã em Portugal tornou-se óbvia numa reunião do Eurogrupo em que Vítor Gaspar, então ministro das Finanças, foi apanhado pela TVI24 a ter uma conversa com Wolfgang Schäuble, em que este explicava que a Alemanha apoiaria Portugal caso fosse preciso um reajustamento do programa. Gaspar retorquiu: “Isso seria muito apreciado”.

Mas o alinhamento de Pedro Passos Coelho não terá sido completo. Durante as reuniões do PPE para escolher o novo líder da Comissão Europeia em 2014, Merkel mostrou que não queria apoiar Jean-Claude Juncker para o cargo, apesar de o PPE ter sido o partido mais votado nas eleições e Juncker ter sido o seu cabeça de lista nos 28 Estados-membros. Passos foi o primeiro a falar logo a seguir à chanceler alemã e disse que devia ter percebido mal, já que tinha apoiado completamente Juncker e era o legítimo sucessor de Durão Barroso. Merkel ficou isolada e a decisão do PPE foi apoiar Juncker na liderança da Comissão.

Novo Governo e a posição fragilizada de Merkel na Europa

“A posição da Alemanha não variou, até porque tem os mesmo líderes há muito tempo. Tem um conceito estratégico europeu mais abrangente que os outros Estados-membros e quer garantir a estabilidade, havendo grande compromisso e sem divergências interna”, explica um antigo ministro do Executivo de Sócrates ao Observador. Segundo este ex-governante, Merkel tem capacidade de promover compromissos e, no Conselho Europeu, pronunciava-se sempre com uma solução na mão. Apesar de a crise dos refugiados e a abertura das fronteiras ter causado alguma polémica, Merkel “revelou, mais uma vez, capacidade de liderança” e a sua posição “ajudou a gerir a pressão” nos países europeus.

Apesar destas dificuldades e de Portugal ter mudado de Governo, António Costa esteve em Berlim logo em fevereiro, com o esboço do Orçamento do Estado na mala. Merkel pediu para continuar o caminho do antecessor. “O antecessor de António Costa conduziu Portugal por um período bastante conturbado, não foi fácil, mas conseguiu-se, de facto, coisas impressionantes e tem que se fazer tudo para continuar este caminho bem sucedido”, disse a chanceler. Já Costa defendeu a sua proposta de orçamento afirmando que era “responsável”, criando condições para o crescimento e emprego e maior proteção social.

2 fotos

Marisa Matias defende que há um alteração importante: a linha política a lidar com a Alemanha é distinta. “O Governo não aceitou assinar por baixo como mostrou no Orçamento. Há uma lógica de recuperação de rendimento e reposição de direitos. Há uma relação de poder diferente”, garante a eurodeputada, embora admita que a chantagem das instituições europeias continua em relação a Portugal nomeadamente no que diz respeito à possível imposição de sanções já em julho.

No entanto, não parece haver um eixo consistente para fazer frente à Alemanha. “O equilíbrio dos poderes ficou afetado e criou uma posição de vantagem para a Alemanha. França está auto-isolada e preocupada com o terrorismo, Itália não tem força suficiente e Portugal está mais ou menos na mesma situação em que estava antes da crise”, considera António Goucha Soares.

Angela Merkel está “vigilante” em relação a este novo Governo, segundo afirma a mesma fonte do PPE. “Ainda estamos na fase da expectativa, embora exista uma grande desconfiança. A Alemanha não se importa com as rubricas ou as medidas que constem nas posições do Governo nacional, desde que a última linha bata com as metas e regras do euro”, explica, acrescentando que a solidariedade mostrada ou não a Marcelo Rebelo de Sousa durante a sua visita vai depender dos números apresentados por Portugal.