Escola nova, família nova, país novo. Um ano a estudar fora de casa, longe dos amigos e dos pais, um desafio voluntário que cada vez chega a mais adolescentes. A American Field Service, AFS, promove intercâmbios culturais há quase 100 anos. E quem já participou garante que é uma experiência única e enriquecedora.
Antes das histórias, ficam os números. A AFS está presente em Portugal há 60 anos, sob o nome Intercultura-AFS. Tem o estatuto de Instituição de Utilidade Pública desde 1990. No ano passado Portugal acolheu e integrou 85 jovens estrangeiros nas mais de 70 escolas parceiras da AFS. Em contrapartida, foram 57 os estudantes portugueses que saíram do país no âmbito de um programa desta natureza. Este ano há menos portugueses em programa AFS, mas houve um aumento dos estrangeiros que vieram para cá.
57
estudantes portugueses fizeram um programa AFS em 2014.
AFS Portugal
João Antunes, 18 anos, é um dos 53 portugueses que se aventuraram este ano. Já completou o secundário mas ganhou uma bolsa da AFS e partiu para a Argentina, onde vai viver ao longo dos próximos meses na cidade de Chos Malal, estado de Neuquén. Sente-se feliz, ainda que a Argentina não tenha sido a primeira escolha. “Se eu tivesse possibilidade, onde eu ia sem pensar era para a Tailândia. Sempre foi um país que me fascinou imenso pela sua cultura.” Atribui a causa desse fascínio aos “estudantes da AFS que vinham de lá para fazer o programa em Portugal”. “Todos os que conheci, e conheci vários, são pessoas excecionais. Ainda hoje falo com todos”, diz entre risos.
Participar e completar com sucesso um programa da AFS não é tarefa fácil. Exige que o estudante se integre numa sociedade diferente, se adapte a uma escola diferente, aprenda uma língua nova e estabeleça laços com os colegas e com a sua família de acolhimento no país de destino. Talvez por isso, quando partiu, João não tivesse muita esperança de se divertir nos primeiros dias. “Pensava que ia andar meio cabisbaixo, deprimido. Pensava que a adaptação ia ser difícil. Mas não, pelo contrário. Está a correr tudo bastante bem. Tenho-me adaptado perfeitamente e estou a ficar surpreso comigo mesmo. Tinha mesmo essa ideia de que, no início, ia ser muito complicado”, confessa o estudante.
Um pouco de história
Para compreender o que é hoje a AFS — e por que razão uma associação com presença em mais de 60 países se chama American Field Service — é preciso ir à história. Mais propriamente a 1914, quando o mundo assistia ao início da Primeira Grande Guerra. Abram Piatt Andrew, secretário adjunto do Tesouro norte-americano, decidiu organizar uma iniciativa de apoio à França, sua aliada. Reuniu uma série de voluntários e fez nascer a AFS, com a missão de auxiliar e transportar soldados franceses feridos em combate. Com a ajuda de fundos civis, Andrew iniciou as operações da AFS em Neuilly-sur-Seine, uma localidade perto de Paris. O grupo instalou um hospital militar no edifício do conceituado Lycée Pasteur, servindo como extensão do American Hospital of Paris. Era setembro de 1914, dois meses depois do início da grande guerra.
Quando o conflito terminou, no final de 1918, mais de uma centena de voluntários tinha morrido durante as missões realizadas em pleno combate. Os voluntários receberam ainda 272 condecorações oficiais como a Legion d’Honneur, a Medaille Militaire ou, na sua grande maioria, a Croix de Guerre. O certo é que esta espécie de proto-AFS foi evoluindo ao longo dos anos, até se tornar na instituição que é hoje. Logo em 1919 foram criadas bolsas em universidades francesas com o objetivo de promover intercâmbios universitários com os Estados Unidos da América (EUA). Em 1952, mais de 200 estudantes tinham participado neste programa (que sobreviveu mesmo à Segunda Guerra Mundial, na qual a AFS voltou a prestar apoio). Em 1964 a AFS já se tinha expandido a 60 outros países. Portugal incluído.
Mafalda Escada, 20 anos, conheceu a AFS graças à longevidade da instituição. “Há muitos anos, [a associação] tinha uns programas de curta duração e a minha tia foi para os EUA durante duas semanas. Passado décadas, a minha mãe lembrou-se da AFS e decidiu que íamos acolher uma estudante alemã.” Foi o primeiro contacto que Mafalda teve com a instituição, sendo irmã de acolhimento em 2007. O processo foi mantido em segredo. “A minha mãe só me avisou que íamos acolher [a estudante] mesmo em cima da hora, para não me dar hipótese de dizer que não. A primeira semana foi muito estranha. Mas depois correu tudo bem. Foi uma experiência incrível.” No entanto, a ligação à AFS não terminou aqui. Mafalda também quis participar.
“Lembro-me perfeitamente. No Campo de Seleção éramos cerca de 50 [pessoas] numa sala. Tivemos de nos pôr em pé em cima de cadeiras e dizer várias coisas. Uma delas era ‘Eu gostava de ir para…’. Comecei a perceber que só umas cinco pessoas dessas 50 é que não disseram Estados Unidos”, conta Mafalda. Então, com a ajuda da mãe, começou a pensar numa coisa diferente. “Ela foi-me encorajando a pensar nos países escandinavos”, explica. Para Mafalda, era um desafio. “Primeiro, um clima completamente diferente. Por outro lado, aqui tão perto mas, ao mesmo tempo, tão longe. A língua é completamente nova”, refere. E escolheu a Dinamarca. Porquê? “Há aquele mito urbano de que os dinamarqueses são os latinos do norte. Que, apesar daquele ambiente escuro e pesado, são os mais divertidos. E é verdade. Foi essa a razão”, conclui.
Bom para a “autodescoberta”
A experiência mudou-lhe a vida. “Lá, aprendi a estar comigo própria. Eu tinha amigos, tinha a minha família [de acolhimento], mas também passei muito tempo sozinha. Especialmente no início, porque não conhecia praticamente ninguém. Cá, com 17 anos, se eu estivesse sozinha provavelmente não ia às compras ou ao cinema, porque achava que era estúpido ou tinha vergonha. Mas lá não. Comecei a fazer isso sem qualquer medo”, confessa. “Na verdade, a pessoa pode começar do zero. Ninguém nos conhece. Não há esse tipo de pressão. É bom para a autodescoberta.”
“Quando voltei decidi que ia ser voluntária, porque não queria perder a ligação à AFS”, explica Mafalda Escada. “Não é bem como um programa, mas é manter aquela ligação sem se estar demasiado envolvido no programa de alguém”, acrescenta. Para além de ajudar na parte logística da instituição em Portugal, Mafalda Escada é ainda conselheira de um estudante russo: Andrey Minko.
“É como ter um filho”
Antes do programa Andrey vivia em Ust-Ilimsk (Irkutsk), na Sibéria. Agora, vive em Alfragide com António Rego, o seu pai de acolhimento. Tem 15 anos, é a primeira vez que está na Europa e, até agora, está a gostar. “É diferente”, diz. Estava nervoso antes de começar o programa, mas agora já não. Não há motivo para receios. António parece estar sempre pronto a ajudar no que for preciso. “Ele é muito bom. Gosto dele. Está sempre a mostrar-me e a contar-me coisas sobre Portugal. Tenta sempre ajudar-me a aprender português e isso é fantástico. Nem todas as famílias de acolhimento fazem isso. É muito bom para mim”, confessa.
Porque decidiu fazer o programa? “Primeiro, é uma experiência intercultural. Quem a faz quer saber mais sobre a cultura e sobre as pessoas do país para onde vai. É o principal. Depois, é a questão de aprender o idioma. Acho que é a quinta língua mais falada, certo? Por último, quero fazer novos amigos. É sempre bom ter amigos em todo o mundo”, explica Andrey.
O primeiro contacto
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António Rego, pai de acolhimento, conheceu a AFS Portugal em 1989. Na altura, enviou a filha Marta para a Holanda.
António Rego tem um grande historial na AFS. Tem 69 anos e Andrey Minko é já o terceiro estudante estrangeiro a passar por sua casa. Na primeira experiência enquanto família de acolhimento, em 1998, recebeu uma estudante de Porto Rico. Em 2012, acolheu um estudante tailandês. “É como ter um filho”, explica António Rego. De sangue, tem cinco. E o primeiríssimo contacto que teve com a AFS em Portugal aconteceu quando enviou a sua filha Marta para a Holanda, em 1989. Dois anos depois foi a vez do seu filho Samuel voar para a Suécia. Reduziu os contactos ao máximo. A comunicação além-fronteiras não era tão evoluída como hoje e a própria instituição aconselhava isso mesmo. “Nós cumprimos”, salienta. Por isso, António considera que nessa altura os programas “eram mais intensos”. Mais recentemente, entre 2013 e 2014, foi o filho Francisco a fazer programa AFS na Alemanha.
Acolher um estudante
Na casa de Filipa Ribeiro vive Neeranara Sornsriwichai, uma adolescente tailandesa de 17 anos. Casada, com duas filhas, é a primeira vez que Filipa acolhe uma estudante estrangeira. Encontrou a AFS no Facebook e achou que aquela iria ser uma experiência enriquecedora para a família, mas sobretudo para as filhas — uma com seis, outra com 16 anos. “Foi mais a pensar na de 16, que está a frequentar o [ensino] secundário este ano. É uma rapariga introvertida e um pouco reservada. Achei que era gratificante para ambas terem outra pessoa de uma cultura totalmente diferente, que falasse uma outra língua, com quem elas pudessem partilhar tudo”, conta Filipa Ribeiro. Por isso, acolheram Sornsriwichai. Ou Seenum, como prefere que lhe chamem. “[Ela] agora é nossa filha. Pelo menos durante dez meses. E é assim tratada como tal”, assume Filipa.
Contudo, há sempre uma série de preocupações parentais associadas ao acolhimento de um estudante AFS. “Eu estava preocupadíssima”, confessa Filipa Ribeiro. “Mas a direção da escola é fabulosa. A vice-diretora disse-me que as minhas preocupações de mãe eram legítimas, mas [aconselhou-me] a não estar preocupada porque a escola ia apoiar. Tem sido realmente um enorme apoio”, diz.
Caso diferente é o de António Rego. Apesar das diversas experiências de acolhimento que já teve, esta é a primeira vez que recebe um estudante enquanto divorciado. “Estou a sentir que dá muito mais trabalho”, desabafa. Ao que parece, casa cheia é sinónimo de um “acompanhamento mais natural” e “mais fácil”, garante António. Algo que não acontece quando tudo recai sobre os seus ombros: “Tenho de ter as coisas todas preparadas”, explica.
Será, então, melhor ou pior? “Nunca é nada igual. A dedicação tem de ser maior. O dia-a-dia em casa é mais solitário”, indica António Rego, salientando que, contudo, Andrey Minko é “muito sociável” e que “já está a criar o seu núcleo de amigos na escola”. Por sua vez, Andrey parece concordar. “Para mim é fácil encontrar amigos”, diz o estudante. E até prefere assim: “Tenho dois irmãos na Rússia. Ser o único, aqui em Portugal, é muito bom.”
O “retro-choque”
Ao longo dos programas da AFS os estudantes são sujeitos a uma série de Campos, que são encontros de jovens onde os voluntários promovem várias atividades com uma finalidade específica. Esse objetivo pode ser a seleção dos candidatos às vagas para intercâmbios, a sua orientação prévia ou até preparação do seu regresso. “[Um Campo] tem sempre um ensinamento. Tem sempre uma mensagem a transmitir”, como explica João Antunes. Mas, ao fim de um ano, quando os estudantes voltam ao país de origem, espera-lhes ainda um último campo: o de Reorientação — ou o “retro-choque”, como é vulgarmente chamado. Neste caso, o objetivo é acostumar os estudantes aos hábitos originais, após um ano expostos a uma cultura diferente. “É uma maneira de processar informação”, explica Mafalda Escada.
Ainda assim, há quem não passe por essa experiência. Foi o caso de Gonçalo Ramos, de 19 anos, que fez intercâmbio nos EUA quando tinha 16. Não foi rebeldia. Simplesmente optou por ficar depois de o programa acabar. Ingressou no ensino superior e prosseguiu estudos na Xavier University, no estado norte-americano de Ohio.
“A ideia dos Estados Unidos foi sempre a mais forte”, diz Gonçalo Ramos. Nem as atividades desenvolvidas no Campo de Seleção da AFS foram suficientes para o demover. “Desde miúdo, os Estados Unidos sempre foram aquele país poderoso que nós víamos na televisão, nos filmes.” E havia ainda outro elemento a dar impulso à decisão: os “grandes eventos desportivos” e o próprio desporto. “Sempre fui um atleta, ou seja, todos esses eventos grandes… o movimento… [tudo isso] me atraía imenso”, explica. “Mas sou sincero: sempre ponderei [outros países]”, confessa Gonçalo, explicando que se não fosse selecionado para os EUA “não teria ficado triste de todo”. Permaneceu em território norte-americano até regressar este ano a Portugal para completar um ano sabático. Conta voltar em 2016, para terminar o curso.
“São programas dispendiosos”
Com tudo isto, uma coisa é certa: seja nos EUA ou em outro país qualquer, um programa da AFS é uma forma diferente de alargar horizontes. Quem se aventura não fica indiferente à mudança de pensamento e de postura que um intercâmbio cultural proporciona. Mas não está ao alcance de todos por causa do custo financeiro. Que o diga João Antunes: “Quando conheci a AFS, quando fui investigar melhor, [percebi que] são programas dispendiosos”, conta. Valeu-lhe a bolsa que, segundo o próprio, “é uma excelente ajuda” e “paga quase todo o programa”. Gonçalo Ramos avança mesmo um valor: fora as “despesas individuais”, o programa custou-lhe “cerca de 9.200 euros”.
Para o ano letivo de 2016/2017, a AFS Portugal voltará a oferecer bolsas de estudo para “dar oportunidade aos jovens cujo rendimento familiar não lhes permite participar” num programa “em condições normais”. Entre os destinos disponíveis está a Bósnia e Herzegovina, República Checa e Rússia, com taxas de participação a começarem em 5.240 euros (valor da bolsa incluído). As candidaturas encerram a 9 de novembro. Basta submeter a documentação exigida e esperar pelos resultados. E se a confirmação chegar, há que fazer as malas e partir para a aventura. “É só vantagens”, garante João Antunes.
Editado por Diogo Queiroz de Andrade.