Esta simples regra de boa conduta democrática parece hoje banal no mundo que felizmente se habituou à ideia de democracia como “regime normal”. Mas talvez seja oportuno recordar que esta “normalidade democrática” foi em grande parte resultado do “excepcionalismo democrático” dos povos de língua inglesa.

Foi precisamente este “excepcionalismo democrático”, a que chamei “tradição anglo-americana da liberdade”, que esteve em discussão no National Endowment for Democracy, a 27 de Outubro, e na Heritage Foundation, a 1 de Novembro.

O “excepcionalismo democrático” dos povos de língua inglesa é ainda hoje vagamente reconhecido a propósito da II Guerra Mundial de 1939-45. Apesar do revisionismo pós-moderno que tende a dominar a nossa atmosfera intelectual, as pessoas ainda ouvem falar da solitária resistência dos países de língua inglesa contra o crescimento do nazismo e do comunismo — que no continente europeu conduziu ao colapso da democracia na década de 1930 e à dupla invasão da Polónia em Setembro de 1939.

Menos reconhecido ainda é o excepcionalismo dos povos de língua inglesa que permitiu a própria plausibilidade inicial da ideia democrática. Foram as “revoluções não revolucionárias” de 1688 em Inglaterra e de 1776 na América que viabilizaram os mais antigos regimes constitucionais pluralistas. Perante as convulsões violentas do continente europeu, os estáveis regimes constitucionais de língua inglesa (apesar da guerra civil americana de 1861-65) sugeriam a possibilidade da democracia num mundo dividido por dogmatismos rivais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Muitos autores no continente foram sensíveis a este excepcionalismo dos povos de língua inglesa. Montesquieu, Tocqueville, Élie Halévy e Raymond Aron, em França, Karl Popper e Friedrich Hayek, na Áustria, Isaiah Berlin, na Letónia, Leo Strauss e Ralf Dahrendorf, na Alemanha, são apenas alguns dos nomes mais conhecidos entre os muitos continentais que apreciaram esse excepcionalismo. Halévy usou na década de 1930 a expressão “Milagre inglês” para designar o fenómeno, assim descrito pela historiadora americana Gertrude Himmelfarb:

“O verdadeiro milagre da Inglaterra moderna (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recorrer à Revolução”.

Alexis de Tocqueville tinha captado essa mesma especificidade do mundo de língua inglesa dizendo que ela residia na arte de evitar “dicotomias infelizes” (uma expressão mais tarde cunhada por Dahrendorf): entre religião e liberdade, entre Antigo Regime e Revolução, entre tradição e mudança, entre passado e futuro.

Em grande parte, observou Tocqueville, esta arte de evitar dicotomias infelizes resultava da arte de limitar o poder político: através do sistema de freios e contrapesos, no aparelho de Estado; através da liberdade de expressão e de religião, na praça pública; e, fundamentalmente, através do que designou por “arte de associação”.

No mundo de língua inglesa, observou Tocqueville, as diferentes propostas filosóficas, religiosas, políticas e culturais não ambicionavam em primeiro lugar captar o poder de Estado para impor uniformemente a toda a sociedade as suas próprias convicções. Aspiravam sobretudo ao direito de “viver e deixar viver”, ao direito de livre associação e de livre expressão.

Por esta razão, essas diferentes propostas conseguiam conjugar duas atitudes que noutros lugares se excluíam mutuamente: por um lado, exibiam um elevado grau de intensidade e de hostilidade mútua; por outro lado, reencontravam-se no chão comum da comum reivindicação de liberdade de associação e de expressão. Em regra, nenhuma delas exigia para si própria a captura integral do Estado pelas suas convicções particulares.

A presente campanha presidencial norte-americana tem exibido até agora apenas uma das dimensões detectadas por Tocqueville: o elevado grau de intensidade e de hostilidade mútua. É desejável que, a partir de amanhã, a democracia americana exiba a outra dimensão tocquevilliana: a arte de evitar dicotomias infelizes e de fazer conviver decentemente intensas convicções rivais.