A história ainda é recente. Conheceu os primeiros desenvolvimentos no pino do verão. A estação dos incêndios. O Presidente da República e o Governo, designadamente o primeiro-ministro e a ministra da Administração Interna, como personagens principais. A morte e a dor como testemunhas. Cenário dantesco que entrou pelas nossas casas. Um horror que consumiu 64 vidas como se de eucaliptos se tratasse.

Numa das suas viragens à esquerda, o Presidente antecipou-se à geringonça. Uma guinada rápida. Tipo carro de apoio. A situação era grave. A geringonça quase submersa pelo fumo. Serviu de bombeiro.

A sentença presidencial foi imediata. Dispensou a reflexão. Tinha sido feito tudo o que era possível. Estava dito. Só que, ao contrário da palavra de rei, a palavra presidencial pode voltar atrás. Conhecer nuances. Adaptar-se às circunstâncias.

Por isso, se começou a ouvir falar de inquéritos. Era preciso averiguar responsabilidades. Algo que o Governo subscreveu. Provavelmente seguro de que não sairia chamuscado. Tal a confiança de – e em – Constança Urbano de Sousa.

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Os dias foram passando. Ao contrário da dor dos sobreviventes. A Comissão Técnica Independente foi realizando o seu trabalho. Com celeridade. Com independência relativamente ao Governo, à Assembleia da República e a quaisquer outras entidades públicas ou privadas. Uma regra pouco habitual num país de brandos costumes e muitos interesses instalados. O resultado chegou em forma de relatório.

O retrato revelou-se muito duro. Quase ninguém escapou. Salvaram-se a GNR e o IPMA. O Governo não ficou bem na fotografia. Bem pelo contrário.

Mal leu o relatório, Marcelo Rebelo de Sousa deu uma nova guinada. Voltou a fazê-lo em Pedrógão Grande. Num cenário diferente. A vida começa a retomar o curso. A reconstrução em marcha. A parte mais fácil. Quanto ao sofrimento, a memória ainda está muito fresca. Em muitos casos, esta vida não vai chegar.

O Presidente da Republica, numa declaração que merece constar nos manuais de Direito e de Ciência Política, informou que Portugal esperava com “legítimas expectativas as consequências que o Governo irá tirar”.

Falou depois de ter ouvido António Costa. Que ainda não teve tempo para ler o relatório. A agenda de um primeiro-ministro exige linhas e entrelinhas. No entanto, já prometeu uma reflexão – uma palavra que o uso está a gastar – ponderada e exaustiva. Afirmou, também, que iria tirar ilações.

Certo é que a ministra da Administração Interna não demorou a reafirmar a sua decisão de sempre: não se demite. Apetece dizer que se sente de pedra e cal. Respaldada pelo líder. Consciente do dever cumprido. Mesmo que o relatório aponte no sentido oposto. Afinal Constança Urbano de Sousa esteve no terreno. E até disse que aquele tinha sido o dia mais terrível da sua vida. Deve bastar.

Voltando a Marcelo Rebelo de Sousa, haverá quem veja nas palavras presidenciais proferidas no I Encontro para a Autoproteção e Resiliência das Populações Locais, promovido pela Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, uma viragem à direita.

Porém, talvez seja mais correto dizer que Marcelo se virou para a realidade. Que não é de esquerda nem de direita. É de um país à espera de justiça e respeito pela memória daqueles cujas vidas o fogo consumiu.

O Presidente disse que “já perdemos todos tempo demais”. O problema é que, como um dos seus Conselheiros de Estado, Adriano Moreira, ensina: o tempo não perdoa que o percam.

Professor de Ciência Política