Na semana passada, o Centro de Filosofia e o Núcleo de Estudos Políticos da Universidade de Lisboa promoveram uma estimulante conferência de dois dias (terça e quarta-feiras) sobre o fenómeno do populismo. Não pude assistir a todo o programa, mas a sessão em que participei constituiu uma muito agradável experiência de conversação informada e civilizada entre perspectivas diferentes. Foi particularmente interessante a participação de muitos estudantes — e, pelo que pude perceber, o evento assentou em grande parte na iniciativa de estudantes de Filosofia Política da Universidade de Lisboa.

Pela minha parte, procurei argumentar que o populismo não é um fenómeno novo na história do pensamento político. Inscreve-se numa interpretação da democracia moderna que se opõe à democracia liberal ou constitucional. Alexis de Tocqueville foi talvez o autor que melhor detectou esta outra interpretação da democracia, a que chamou despótica, por contraste com uma interpretação liberal ou constitucional.

Numa democracia liberal ou constitucional, deve existir uma distinção crucial entre aquilo que Ralf Dahrendorf designou por “política constitucional” e “política normal”. Se tudo fosse “política normal”, isto é, se tudo pudesse ser decidido por maiorias passageiras, o pluralismo liberal garantido pela Constituição seria rapidamente abolido por maiorias populistas. Em contrapartida, todavia, nem tudo pode ser colocado no plano constitucional. Tem de haver espaço para a controvérsia entre propostas políticas rivais e para a alternância pacífica entre propostas rivais nos Parlamentos.

Se esta concorrência for asfixiada por um excessivo conteúdo substantivo das Constituições (ou por uma excessiva convergência entre os partidos centrais), a ameaça populista será substituída por uma ameaça vanguardista. Um exemplo deste vanguardismo pode ser recordado no nosso PREC , quando foi imposto na Constituição um objectivo monista a ser alcançado — a “democracia a caminho do socialismo” — em vez de simples regras gerais no âmbito das quais diferentes objectivos pluralistas podem concorrer pacificamente.

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Pode muito bem acontecer que populismo e vanguardismo se alimentem mutuamente e constituam uma dicotomia infeliz que fragiliza a democracia liberal. Mais concretamente, pode acontecer que o crescimento recente do populismo nas nações europeias esteja a ser alimentado, ou pelo menos facilitado, por uma interpretação demasiado fechada do projecto europeu. A esta interpretação, que pretende colocar no plano constitucional o objectivo indiscutível de “Mais Europa”, poderíamos chamar vanguardista.

Por outras palavras, a liberdade moderna assenta num complexo equilíbrio entre dois princípios: o Governo Constitucional e o Governo representativo que presta contas ao Parlamento. A democracia fica ameaçada sempre que este equilíbrio é desrespeitado, ou, como Burke diria, “quando o equilíbrio do navio (da democracia liberal) é posto em risco pelo excesso de carga num dos lados”.

Este excesso de carga num dos lados – quer seja o lado do constitucionalismo, a que chamei vanguardismo, quer do lado da vontade do povo, a que chamei populismo – está em regra associado à promessa ou ambição de um modelo final de perfeição, de uma sociedade perfeita.

A característica comum às políticas de perfeição é a ambição de impedir as mudanças que lhe desagradam — porque contrariam o modelo final de sociedade que é tido como perfeito. Para evitar a dicotomia entre populismo e vanguardismo, devemos recusar as políticas de perfeição e preferir as políticas de imperfeição. São estas políticas de imperfeição que sustentam o modesto conceito de democracia que está associado à liberdade: o modesto conceito de democracia apresentado por Karl Popper como o regime que não consegue garantir bons governos, mas que certamente garante que os governos possam ser substituídos através da escolha dos eleitores, sem derramamento de sangue.

Por outras palavras, este conceito modesto de democracia – podemos talvez chamar-lhe um conceito negativo de democracia – não garante alcançar nenhum resultado final. Apenas exclui alguns resultados finais: impede a tirania e o choque irredentista entre propostas rivais de modelos finais de perfeição. Apenas fornece as regras gerais de uma vida política civilizada, na qual a mudança pode ocorrer sem derramamento de sangue, sem violência.

Foi neste contexto de políticas de imperfeição que Winston Churchill proferiu a famosa frase, “a democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as outras”. Este entendimento negativo da democracia está no centro da tradição ocidental da liberdade sob a lei.