1. “Tardou mas arrecadou”. (há adágios fabulosos). Arrecadou tanto que parece que sempre existiu pelo modo como se tornou indispensável a milhares de pessoas que fizeram dele a sua única fonte de informação, um prazer,  uma experiência, uma necessidade vital, um vicio, uma companhia, uma tertúlia e sim, foi tudo isto que fui ouvindo ao longo destes últimos doze meses. Sem surpresa, de resto: o Observador veio encaixar-se naquele espaço politico, cultural, económico, civilizacional (não sei medir o seu perímetro)  que estava sem uso. Sem quem dele cuidasse, o representasse, ou sequer o “ocupasse”.

Entrou na cena mediática com a lisura, o rigor,  a racionalidade, a imaginação, a elegância, que põe na intermediação entre a notícia e o seu receptador; entre o universo da informação e essa vastíssima plateia de gente  disponível para a consumir mas… não de qualquer modo, nem a qualquer preço. Mérito do Observador, de quem o concebeu, lhe deu vida e alma e de quem lá deixa agora trabalho e suor todos os dias. Tenho pouca responsabilidade no êxito inegável da empreitada mas tenho há muito esta camisola vestida, assisti de perto ás vicissitudes da sua gestação e ao longo parto. E lembro-me do que fui ouvindo e ainda ouço, embora hoje, várias oitavas abaixo: remoques desconfiados, suspeitas infundadas, criticas corrosivas, declarações de intenções, declarações de guerra.

Um grande amigo meu, jornalista, transformou um dia um jantar lisboeta numa arena: o Observador não tinha de ter direito de cidade. Ou não se tratava apenas dos “interesses dos capitalistas, do seu dinheiro e dos jogos políticos?”  Ou então, como garantia alguém cujas responsabilidades ao serviço do país lhe deviam impedir a ligeireza, “o novo projecto iria ser a nova a verdade a que temos direito….” Outra vez, num corredor da TVI , ouvi um grande humorista, a dois centímetros de mim, disparar com sibilina solicitude sobre o David Dinis: “não achas que vocês estão um bocadinho de mais à direita? (ah, se fosse menos, ele não se importaria mas assim… E quem mediria esse autorizado “menos”?) .

Gente de esquerda, já se vê. Sempre atentos, sempre vigilantes.

Quarenta anos depois de Abril de 74, a direita continua sem passaporte. É verdade: “a direita não entra”, é uma espécie de mandamento. Metade do país é como se fosse um intruso na outra metade. Há que pedir licença para existir no mapa nacional. Um mapa obviamente expurgado de uma parte não dispicienda do seu território já que, bem entendido e digamo-lo gentilmente, a direita está proibida de existir: não pode ganhar eleições, não pode governar e muito menos pode fazê-lo bem; (“não sabe”); não pode decidir (“não tem critério”); nem escolher (fá-lo-ia sempre “mal”); não pode ser culta, (a esquerda tem o exclusivo); não pode ter ideias, (são habitualmente “nocivas”); não pode exibir-se, ter brilho, votos ou seguidores; não pode cuidar dos “pobres” (se governar “a pensar neles” está a fazer batota ou então a explorá-los); não pode ganhar prémios, ter biografados, contar com sindicalistas, escritores ou criadores (não tem “legitimidade”); etc. Poderia ir por aí fora, quem sabe até ao infinito, abrindo as várias folhas de um leque que alguém que exista ou respire politicamente à direita do PS não deveria poder permitir-se abrir.

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Estou a ser intencionalmente simplista porque é justamente disto mesmo que se trata    entre nós: da desarmante simplicidade com que se foi fazendo desta subversão da própria democracia uma norma de aço. Durante quase três anos fui olhada nalguns meios bem pensantes entre a ironia ácida e a perplexidade despreziva sobre este projecto informativo mas quer uma, quer outra, acabaram esvaídas na sua inutilidade. Não será por acaso. Um ponto (o maior?) a favor do Observador.

Este enviezamento não é, já se sabe, originalidade nossa. O “mundo” é mais bem de esquerda e as agendas mediáticas, como nos vasos comunicantes, é dele que se alimentam enquanto lhe fornecem o oxigénio de que precisa. Mas espanta que esta espécie de, como dizer?, “rotina” esteja de tal modo assimilada que já nem se repara nela. Só isso explica que se tenha podido escrever com naturalidade que Passos Coelho não podia ter usado um cravo na lapela no dia 25 de Abril porque os comunistas não deixavam, a ninguém incomodando de resto o extraordinário argumento para o veto do cravo. Que se tenha clamado nos écrans televisivos que a coligação não tinha o direito de “ocupar”esse dia histórico com o anúncio do seu segundo casamento político, porque a data lhe é estranha; que tenha havido clamores indignados face a um livro que supostamente conta a história pessoal do primeiro-ministro, não pela sua qualidade (que não existe) ou oportunidade (que não era esta), mas simplesmente porque a esquerda acha que biografias só as dela.

Há aliás mais exemplos de intromissões indesejadas da direita, que não merecem ficar soterrados no esquecimento e eis um deles, que exponho, de tão revelador: uma reunião internacional promovida recentemente pelo secretário de Estado da Cultura para pensar em voz alta os caminhos da cultura, teve, na media, um extraordinário destino: nuns casos, foi liminarmente condenada ao silêncio, noutros, ferozmente vilipendiada.

A iniciativa desenvolveu-se por entre concorridos debates e painéis que em simultâneo, ocorriam em seis salas do Centro Cultural de Belém mas o que foi colocado na montra mediática foi que o chefe do Governo “falara para uma sala onde apenas se sentavam duzentas pessoas” (cito de memória). Não me lembro de ter ficado a saber algo de  interessante (ou mesmo desinteressante) sobre a intervenção de oradores que nunca  poderiam ser confundidos com o governo (Mega Ferreira, Jorge Gaspar, Guilherme Oliveira Martins, Augusto Mateus, por exemplo); ou de ter lido um parágrafo sobre as conclusões deste fórum que durante três dias ocupou o CCB e outros cinco, em diversas salas do país. Retive porém prosa prolixa sobre o custo do evento e ressentidos estados de alma dos jornalistas contra a incursão do governo por um dos mais sagrados territórios da esquerda.

Alguém já reparou que um governante fora da área da esquerda não tem sombra de garantia de que a media o divulgue quando promove iniciativas, fala dos seus projectos ou anuncia o que anda a fazer com o dinheiro público (devendo porém o governo fazer o maior caso das opiniões e recomendações dos comentaristas)? Face a isto, pergunta-se: onde está a informação digna desse nome? E o bom uso das suas regras? E a responsabilidade dos editores? E a ética da profissão? E a liberdade de informação? Não está.

Haveria nestes exemplos muito pano para mangas, mas o que interessará porventura é sublinhar como eles são geradores de outros casos e exemplos, numa infindável e quase obsessiva cadeia de estranhos comportamentos de que o SMS de António Costa a um director do Expresso é excelente exemplo: a tibieza da reação no universo da comunicação social substituiu com vantagem uma rejeição que deveria ter sido imediata e geral e não foi. Mas estamos bem lembrados de como por muito menos que um SMS deste calibre socialista, os governantes de direita foram – e são – criteriosamente triturados ao  longo de anos e anos.

Sim, repito, nada disto é novo nem um exclusivo nacional, como as queijadas de Sintra. Nem tão pouco – desenganem-se – uma lamúria minha porque me deu para aqui. É uma gelada constatação – o que é bem pior, de resto – redigida sem exagero ou parcialidade. Para quê? Para modestamente lembrar que convém que a rotina deste estado de coisas não nos enleie na sua aparente irredutabilidade; nem nos faça desistir de abrir uma estrada dupla numa via há muito de sentido único. Nunca é demais avisar as navegações sobretudo se os ventos políticos não se recomendam.

É que anda-se há quase meio século a roer este osso.

2. A alegria virou um susto e a festa, uma vergonha. O dia que hoje deveria ser “encarnado” para uma benfiquista como eu, foi afinal um dia de luto: aquilo foi ainda pior do que pensámos que foi. A maré está tão baixa que o perigo de encalhar é realíssimo.

3. Parabéns ao Observador. Foi há um ano, foi ontem, foi há uma vida e por isso parabéns aos seus inventores, directores, editores e àquela jovem turma de jornalistas. Merecem o aplauso, a fama e o proveito.