Coliseu dos Recreios, em Lisboa, dia 30 de Março. A Associação Mutualista Montepio Geral realiza a mais concorrida assembleia-geral da sua história. À primeira vista, uma assembleia sem história pois o relatório e contas saiu de lá aprovado por mais de 95% dos votos. Esmagador. Ufano, o presidente, Tomás Correia, proclamava ter sentido que recebera um “voto de confiança”.

Certo? Errado. E errado porque o pouco que se sabe da forma como decorreu essa assembleia-geral é de pôr os cabelos em pé. Nas votações pedia-se a quem estivesse contra que se levantasse. Contados esses votos, todos os restantes (estivessem ou não na sala, bastava terem-se registado à entrada) eram tomados como votos a favor. Não se permitiam abstenções.

Quando ouvi este relato numa rádio na manhã do dia seguinte foi como se tocasse uma campainha: algo tem de estar muito mal naquela associação mutualista para se assistir a métodos de assembleia-geral que lembram os piores tempos do PREC. Com pouco mais ajuda do que a do senhor Google rapidamente confirmei essa ideia. Pior: fiquei com a percepção de que o Montepio pode ser a próxima bomba a explodir no sistema financeiro e que há demasiada gente a assobiar para o lado.

Da forma o mais sintética possível, verifiquemos algumas das anormalidades.

1. Como é possível Tomás Correia ainda ser presidente da Associação Mutualista?

Tomás Correia não é uma figura tão mediática e tão conhecida como Ricardo Salgado, e também não é conhecido como “dono disto tudo”. É apenas o “dono de todo o Montepio”. Quanto ao resto há demasiados pontos em comum para podermos dormir descansados. O mais relevante chama-se José Guilherme. Sim, esse mesmo José Guilherme, construtor civil da Amadora, que deu uma “prenda” de 14 milhões de euros a Ricardo Salgado e que se suspeita ter entregue 1,5 milhões indevidamente a Tomás Correia. Este já é arguido, mas isso não lhe tira o sono: já declarou que só deixará as suas funções se se colocar a possibilidade de transitar em julgado algo a seu desfavor. Reparem no detalhe: “transitar em julgado”. Os seja, daqui por muitos anos. Este financiamento foi realizado, vejam lá, por um fundo gerido por uma empresa do Grupo Espírito Santo.

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Mas há mais. Tomás Correia também é arguido num outro processo, um negócio imobiliário concretizado por altura da OPA do Montepio sobre o Finibanco e que também envolve Humberto Costa Leite, por “coincidência” quem haveria de vender o Finibanco ao Montepio. Neste caso é suspeito de insolvência dolosa e burla agravada.

E depois há, claro, a OPA do Montepio sobre o Finibanco, em 2010, uma OPA que valorizou este último em 340 milhões de euros quando, numa primeira fase (2008), a avaliação apontava para apenas 240 milhões. Pior: nos cinco anos seguintes a associação mutualista registaria mais de mil milhões de euros de prejuízos resultantes da operação do antigo Finibanco. Toda a operação é uma teia muito complexa que envolve figuras de topo do sistema financeiro, nomeadamente José Lemos, que fora presidente da Bolsa de Lisboa.

2. As ligações perigosas de Tomás Correia.

Bastariam estes dois casos, e as suspeitas que os rodeiam, para que alguém com um pingo de vergonha já se tivesse afastado da associação mutualista, mas não. No tempo em que Tomás Correia também presidia à Caixa Económica Montepio – a instituição bancária ligada à associação mutualista – ele também concedeu um crédito de 18 milhões de euros a Paulo Guilherme, filho do nosso conhecido José Guilherme, dinheiro esse que foi depois investido na instituição – através do Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral –, o que para o Banco de Portugal corresponde a uma violação das regras sobre partes relacionadas e conflitos de interesse.

Mas não é apenas por causa deste financiamento que o Banco de Portugal acusou Tomás Correia, e outros administradores da Caixa Económica Montepio Geral (CEMG), de várias irregularidades especialmente graves, considerando que na análise de vários créditos não foram cumpridas as boas regras de análise de risco, nem sequer as normas internas. Um dos outros casos foram os créditos concedidos ao Grupo Espírito Santo no primeiro semestre de 2014, muito pouco tempo antes da sua implosão. Ainda hoje, por causa desse negócio, a Caixa Económica detém 10,3% da Monteiro Aranha, um grupo brasileiro que foi parceiro de Ricardo Salgado em vários negócios.

Ou seja, começamos a ver demasiados terrenos pisados em comum por Tomás Correia e Ricardo Salgado. E há ainda mais.

3. O estranho caso de João Neves, entre o BES e o Montepio.

Confesso que antes de ter começado a procurar informação sobre o Montepio nunca tinha ouvido falar deste nome. Mas com a ajuda da Cristina Ferreira fiquei informado. Tentando contar a história em poucas palavras, no final do século passado, trabalhava João Neves no Banco Espírito Santo, e passaram por ele um conjunto de cheques que levaram os clientes a queixarem-se de irregularidades, num processo que foi do conhecimento do Banco de Portugal e do próprio Ricardo Salgado e teve vários volte-faces. Entretanto, João Neves tinha passado para o Montepio Geral, onde era um homem de confiança de Tomás Correia, à época o número dois do banco. O passo seguinte foi a sua subida à administração – onde ainda se mantém, apesar de entretanto Tomás Correia ter deixado o banco e passado apenas à mutualista. Essa ascensão teve que vencer um grande obstáculo: o Banco de Portugal, onde havia memória do processo em que João Neves estivera envolvido no BES, recusa conceder-lhe a necessária idoneidade.

Até que, em Janeiro de 2014, chega ao Banco de Portugal uma surpreendente carta do BES a retirar todas as suspeitas relativas ao antigo processo e a elogiar as qualidades técnicas de João Neves. O Banco de Portugal não cede à primeira, mas acabaria por ceder e João Neves lá chegou a administrador. Entretanto, nos primeiros meses de 2014 – aqueles em que o BES muda de opinião sobre o seu ex-colaborador – o Montepio foi concedendo vários créditos ao Grupo Espírito Santo, incluindo à famosa Rioforte (que afundaria a PT). O crédito à Rioforte data de Junho de 2014, o GES cairia com o estrondo conhecido pouco menos de um mês depois.

É claro que a mudança de posição do BES relativamente a João Neves pode ter apenas coincidido com as datas destes créditos, para mais obtidos numa altura em que já ninguém arriscava um cêntimo no grupo de Ricardo Salgado. Mas é uma maldita de uma coincidência. Tanto mais que, quando José Félix Morgado substitui Tomás Ferreira à cabeça da CEMG, João Neves é o único administrador que transita para a sua equipa.

4. Assembleias gerais sob suspeita.

Imagino que alguns leitores já possam estar cansados com tantos casos, coincidências e processos, e mais ficaram por contar, mas não posso deixar de referir a forma como Tomás Correia foi eleito, a 2 de Dezembro de 2015, para presidente da Associação Mutualista, depois de obrigado a sair da Caixa Económica pelo Banco de Portugal. O caso está em tribunal, pois uma das listas derrotadas não considerou regulares as eleições (onde se registou uma abstenção de 85%). Eis alguns dos pontos sobre os quais terá de se pronunciar o tribunal: não havia caderno eleitoral; não foi entregue a todas as candidaturas informação para contactarem os eleitores; na comissão eleitoral havia predominância de elementos da lista vencedora, a qual também terá usado em seu benefício meios do Montepio ao serviço da Lista A; por fim, as listas da oposição não conseguiram conferir as assinaturas dos votos por correspondência, 95% do total.

Aparentemente, a forma estranha – para não ir mais longe – como decorreu a assembleia-geral do Coliseu, a que me chamou a atenção, não será inédita. Pelo que vale a pena tomar nota do nome de quem a ela presidiu: o padre Vítor Melícias.

Mas fiquemo-nos por aqui, pois tudo o que atrás descrevemos era, só por si, suficiente para levar as autoridades a serem mais actuantes – e essas autoridades são, recordemos, as autoridades de supervisão bancária, em concreto o Banco de Portugal, o qual parece sobretudo preocupado em separar o banco (a Caixa Económica) da contaminação pela associação mutualista (onde é que já ouvimos este fado da criação de uma separação entre um banco e as outras actividades do grupo?), e a autoridades de supervisão do mutualismo, em concreto o Ministério da Solidariedade Social e o ministro Vieira da Silva.

É que há muito mais coisas mal. De acordo com as contas de Eugénio Rosa, um economista ligado à CGTP que foi um dos candidatos derrotados nas eleições, “o activo da Associação Mutualista sem interesses minoritários (aquilo que possui e tem a haver) já era inferior ao seu passivo (o que deve e tem a pagar) em 107 milhões de euros em 2015”. Trata-se de uma situação que corresponde a falência técnica, mas a verdade é que há muito mais contas que não conhecemos, pois a administração de Tomás Correia não as mostra. Não sabemos, por exemplo, o que se passa nas empresas de que a associação mutualista é proprietária – e de acordo, ainda, com Eugénio Rosa, a associação tem pelo menos 2,3 mil milhões de euros aplicados em empresas cuja saúde não se conhece. Quanto dinheiro está aí em risco?

Mas o que é potencialmente mais explosivo são os produtos financeiros que os associados da mutualista compraram ao longo dos anos aos balcões da Caixa Económica e sobre os quais há pouco controle. Basta referir que alguns desses produtos se assemelham, na opinião dos supervisores, a seguros. Ora, como só as seguradoras podem vender seguros, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros já sugeriu várias vezes (ao actual governo e ao anterior) para que passasse a supervisão da associação mutualista para a alçada da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Mas nada aconteceu.

Ora, tudo isto é explosivo, porque a associação mutualista tem mais de 500 mil associados, o que significa que um colapso teria um impacto muito maior, incomensuravelmente maior, do que o dos “lesados do BES” ou dos “lesados do Banif”. Até porque se os depositantes da Caixa Económica têm as suas poupanças salvaguardadas até aos 100 mil euros, nada protege o dinheiro de quem o aplicou na associação mutualista.

Há, pois, motivos para estarmos preocupados. Politicamente preocupados. Primeiro, por causa das quase inacreditáveis palavras de Mário Centeno na entrevista que deu ao Público e à Renascença. “Eu estou descansado em relação ao meu trabalho”, disse o ministro das Finanças quando interrogado sobre se estava descansado quanto ao futuro do Montepio, o que parece indicar que não estará descansado com o trabalho de outros (do ministro Vieira da Silva?). O primeiro-ministro, também em entrevista à Renascença, veio tentar colocar água na fervura, declarando-se igualmente “tranquilo” mas protegendo o seu ministro da Solidariedade Social.

Como gato escaldado da água fria tem medo, e todos estamos cansados de declarações de “tranquilidade” nas vésperas das várias crises bancárias, as quais já mobilizaram – contas do Banco de Portugal – 13 mil milhões de euros de dinheiros públicos, só podemos olhar com inquietação, mas mesmo muita inquietação, para as notícias sobre uma possível entrada da Santa Casa da Misericórdia para reforçar os capitais da Caixa Económica Montepio Geral. Como é possível? Que riscos é que isso envolve? E que sentido faz, para além de ser um remendo? Faz uma tal operação parte da missão da Santa Casa?

Quando se chega a este ponto é porque a aflição é grande. E as saídas poucas. Antes do colapso do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado tentou convencer o governo de então a permitir uma “ajuda” da Caixa Geral de Depósitos. Passos Coelho disse que não. E essa foi seguramente uma das decisões mais importantes e mais positivas do seu mandato – basta imaginar a dimensão do buraco para que a Caixa poderia ter sido arrastada.

Será que agora está a acontecer o contrário e logo com a Santa Casa? Tenham medo, muito medo.