Ainda faltam oito anos mas o Mundial de futebol de 2022, a realizar no Qatar, já foi várias vezes notícia, não pelos melhores motivos. Desta vez, não é diferente. De acordo com uma investigação do jornal britânico The Guardian, os trabalhadores estrangeiros que construíram os escritórios de luxo do arranha-céus Al Bidda, situado em Doha, capital do país, e conhecido como a Torre de Futebol, não recebem há mais de um ano e estão a viver, ilegalmente, em quartos sem as mínimas condições de higiene.

Sem contar as baratas, são sete pessoas por quarto, diz o jornal britânico. Dormem no chão ou em colchões sujos e vivem com o medo constante de irem parar à prisão, depois de terem ficado sem documentos após o colapso da empresa contratada para o projeto, a Lee Trading and Contracting. Os que falaram com os jornalistas, explicaram que, como consequência, agora recebem, no máximo, 50 centavos. “Não sabemos quanto é que está a ser gasto com o Mundial de futebol, apenas queremos os nossos salários. Trabalhamos mas não recebemos. Seja o governo, seja a empresa: nós só queremos o nosso dinheiro”, contou um dos trabalhadores. “Não ganhei dinheiro nenhum“, disse outro trabalhador, um nepalês de 35 anos e pais de três filhos. “Se tivesse dinheiro, já tinha comprado um bilhete de regresso a casa”, acrescentou.

Os membros do Comité Supremo de Entrega e Legado do Qatar, encarregado de organizar o campeonato mundial de futebol, têm utilizado os escritórios, construídos por emigrantes oriundos do Nepal, Sri Lanka e da Índia que, apesar de se queixarem às autoridades nacionais, não receberam nos últimos 13 meses os seus salários: 6 libras diárias (quase 8 euros). O projeto foi diretamente encomendado pelo Governo do Qatar. Os escritórios, para os quais foram gastos 2.5 milhões de libras em equipamento, têm janelas de vidro gravado, mobiliário italiano feito à mão e casas-de-banho com sanitas com sistema de aquecimento.

O caso já tinha sido denunciado pela Amnistia Internacional (AI) em novembro de 2013. Na altura, os trabalhadores apresentaram um processo judicial contra a Lee Trading and Contracting no Tribunal do Trabalho de Doha, mas o tribunal pediu a cada um o pagamento de uma taxa de 600 riais (123 euros), a moeda oficial do Qatar, pela realização de um relatório sobre a situação, sem o qual o caso não pode progredir.  De acordo com a lei de trabalho do Qatar, os trabalhadores devem ser isentos do pagamento de taxas judiciais.

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Sharan Burrow, secretária-geral da Confederação Sindical Internacional, disse ao jornal britânico que era criminoso o modo como estes trabalhadores estavam a ser tratados. “É um abuso terrível dos direitos fundamentais e não há nenhuma preocupação por parte do governo, a não ser que estes trabalhadores sejam descobertos pela polícia. Em qualquer outro país este comportamento podia ser processado”, declarou.

Os contratos mostram que o projeto foi encomendado pela Katara Projects, uma organização pertencente ao governo, que estava sob as ordens do então príncipe herdeiro Tamim bin Hamad al-Thani, que é agora emir e que também preside o Comité Supremo, que está a gastar, pelo menos, 4 milhares de milhões na construção de novos estádios de futebol. Para a construção dos estádios e de outras infra-estruturas ligadas ao campeonato mundial de futebol, o Qatar espera, até ao final deste ano, milhares de trabalhadores estrangeiros extra.

Um porta-voz da Katara Projects falou ao The Guardian e explicou que o acordo com a Lee Trading and Contracting terminou quando se descobriu o modo como os trabalhadores eram tratados e quando a questão do “não pagamento dos salários” veio a descoberto. O mesmo porta-voz contou que a Katara está disponível ajudar os trabalhadores a regressarem ao seu país de origem ou a encontrar novos postos de trabalho. “Se ainda houver trabalhadores que não foram repatriados ou que não encontraram um novo emprego, nós ficaríamos felizes em trabalhar em conjunto com o ministério do Trabalho ou o ministério do Interior para corrigir a situação”.

O governo do Qatar já prometeu uma reforma das leis laborais, nomeadamente a abolição do sistema Kafala, um sistema utilizado no Líbano, Arábia Saudita, Jordânia e nos Estados Árabes do Golfo Pérsico para monitorizar os trabalhadores migrantes na área da construção. Este sistema exige que todos os trabalhadores tenham alguém responsável pelo seu visto e pelo seu estatuto legal no país para onde vão trabalhar. O mesmo sistema impede os trabalhadores de mudarem de trabalho ou de deixarem o país sem o consentimento da entidade empregadora. De acordo com o The Guardian, em 2012 e 2013, 70 trabalhadores da Índia, Nepal e Sri Lanka morreram em acidentes de trabalho e 56 suicidaram-se.