Perante as opções em cima da mesa, António Costa já deixou claro que prefere namorar com a esquerda. Não com a direita, com quem recusa fazer o papel do casal do arco da governação, mas também não com uma esquerda qualquer. E, por isso, disse mesmo quais são os requisitos que a esquerda deve preencher: não se pode limitar a ficar “na posição cómoda do protesto”, tem de querer “trabalhar para a solução” e não tem necessariamente de ser nenhum dos colegas do lado no Parlamento.
Mas, a acontecer, isto é, na hipótese de o PS ganhar as legislativas sem maioria e procurar apoio de governação no Livre, esta relação pode vir a ter altos e baixos. Olhando para o programa político do partido fundado por Rui Tavares e para a Agenda para a Década desenhada por António Costa, adivinham-se momentos de lua-de-mel mas também alguns arrufos. Vejamos alguns temas-chave:
Flexibilizar a dívida
Livre: O partido Livre é claro quanto à necessidade de agir contra o endividamento externo e não teme a palavra “reestruturação”. No programa político aprovado no congresso fundador do partido, em janeiro, o Livre dizia que “os juros da dívida que Portugal terá de pagar são excessivos para a nossa pequena economia e (…) comprometem toda a política de crescimento”. E no programa com que se candidatou às europeias, em maio, pedia um diálogo urgente a nível europeu sobre o tema.
Mas numa entrevista dada à agência Lusa em novembro, Rui Tavares recusava a ideia de que a renegociação da dívida fosse uma “linha vermelha” nas eventuais negociações com o PS, preferindo chamar-lhe “linha verde” para combater a dívida e o Tratado Orçamental junto das instituições europeias.
PS: Costa é, no entanto, muito mais cauteloso. As palavras “reestruturação” e “renegociação” são proibidas. Mas, como o Livre, também António Costa é adepto do diálogo com a Europa sobre este tema. Na Agenda para a Década admite o “elevado grau de endividamento do país” e defende que Portugal deve “criar mecanismos de monitorização e gestão da parcela da dívida pública dos Estados que exceda os limites de Maastricht”. Palavra-chave: flexibilidade. “Uma leitura flexível e inteligente das regras orçamentais da União Europeia”, diz Costa, sem, no entanto, concretizar muito nem apresentar soluções de curto prazo para o problema da dívida. No Parlamento, o PS foi cauteloso e optou apenas uma discussão ampla sobre o assunto.
A Europa e os tratados europeus
Livre: Este é talvez o principal ponto de discórdia: o Tratado Orçamental. É que, se o PS sabe que tem de o cumprir e por isso pede só uma “leitura inteligente”, o Livre acha que o tratado é “a linha vermelha que impede a política expansionista”, segundo disse ao Observador um dos dirigentes responsáveis pela elaboração do programa, Renato Carmo. E por isso considera que só a revogação dos princípios fundamentais do tratado permite caminhar rumo ao crescimento económico. No programa do Livre lê-se mesmo que o tratado “restringe as opções dos governos e dos parlamentos, proíbe-os de impedir uma espiral recessiva, e reduz as eleições a uma mera formalidade”. Sobre a Europa propriamente dita, o Livre também assume que é preciso mudar o rumo da UE sem “ter de desfazer a união”. Ou seja, construindo uma Europa mais democrática, a partir de dentro.
PS: António Costa tem centrado muito o seu discurso na Europa e na necessidade de unir as forças socialistas em Bruxelas para mudar o rumo. No programa para a década, fala numa “nova voz na Europa” e num “novo impulso na União Europeia”, já que a ação de qualquer governo a nível nacional está sempre dependente da ação na UE. Sobre política orçamental, Costa sabe que tem de respeitar o Tratado Orçamental (e as regras do Tratado de Maastricht) e que a margem para alterar este documento não é larga, mas mesmo assim quer que o país se junte àqueles que fazem uma “leitura inteligente e flexível” do Tratado Orçamental e das regras europeias para que isso ajude a aplicar medidas “contra cíclicas” e a centrar os esforços no “investimento estratégico”. Para o Livre, no entanto, não ficou claro que o PS quer dizer com a “leitura inteligente”.
Aumentar o Salário Mínimo Nacional?
Livre: Sim. O programa político foi escrito antes do aumento anunciado pelo atual Governo, mas em janeiro o Livre pedia um compromisso claro com o “aumento gradual, mas expressivo” do salário mínimo para lá da barreira dos 500 euros.
PS: Também. Costa fala num aumento “sustentado” do salário mínimo, mas não diz para quanto. Antes de o Governo ter aumentado o valor para os atuais 505 euros, em outubro, Costa tinha defendido um aumento para 522.
Política fiscal e distributiva
Livre: O Livre vai mais longe na necessidade de uma política fiscal distributiva, por forma a “atenuar a grande dispersão de rendimentos entre os mais carenciados e os mais ricos”. E para isso propõe medidas que incidam no aprofundamento da progressividade fiscal em sede de IRS e de IRC, assim como uma extensão aos rendimentos do capital e património. Defende também a gratuitidade absoluta dos serviços prestados pelo Estado, nomeadamente nos setores da educação, saúde, segurança e proteção social. Propõe ainda que a UE aproveite os instrumentos que tem para “servir de cobradora de impostos às multinacionais”.
PS: António Costa fala também na diminuição das desigualdades económicas e sociais mas é mais contido quanto à política distributiva, nomeadamente ao nível do IRS e IRC. Em termos fiscais, defende o fim da sobretaxa de IRS e “outros elementos de regressividade do imposto”, assim como propõe, por exemplo, uma valorização fiscal, em sede de IRC, apenas às empresas destinadas ao emprego científico e a atividades de investigação e desenvolvimento. Propõe também o aumento da TSU para os empregadores que recorram a formas precárias de trabalho, de forma a prejudicá-los fiscalmente.
Como combater o empobrecimento?
Livre: Lutar contra o empobrecimento. O Livre dá especial atenção às famílias monoparentais e às famílias numerosas com rendimentos reduzidos, defendendo que devem ser criados planos de combate à fome e à pobreza ao nível comunitário. Os idosos também merecem especial preocupação neste ponto, e nesse sentido o Livre defende a reposição do Complemento Solidário para Idosos, uma medida do anterior governo socialista que Costa quer recuperar. Sobre pensões, o Livre defende uma “reconfiguração” do sistema público de pensões.
PS: A luta contra o empobrecimento é também uma das bandeiras de Costa, com o crescimento da pobreza infantil e as desigualdades sociais a dominarem o discurso socialista. Sobre os idosos, Costa defende precisamente uma maior importância do Complemento Solidário para Idosos em vez do aumento das pensões mínimas. E sobre as pensões quer uma “convergência efetiva” do sistema público e privado.
Com quem trocar alianças?
É a derradeira questão e aquela onde parece haver mais disponibilidade de convergência. A aproximação do Livre (que tem apenas um ano de vida) ao PS sempre foi conhecida. Terá sido principalmente essa a razão que levou outros movimentos políticos, como o 3D, de Daniel Oliveira, e a associação Fórum Manifesto, de Ana Drago, a juntarem-se ao Livre. No seu programa, o partido fundado por Rui Tavares fala logo no desejo de “comunhão de posições políticas com outros partidos” para criar “uma alternativa de progresso para o país”. “Não há tempo a perder para começar a preparar um plano de governação alternativa”: o Livre quer governar com o PS. E o PS já mostrou no congresso que quer virar à esquerda e dialogar com quem quer dialogar consigo.