Amal, chamemos-lhe assim porque ela pediu para que não seja revelado o nome verdadeiro, senta-se num café junto à Praça das Flores, em Lisboa. Pede uma meia de leite com um sotaque estrangeiro. Já consegue perceber português, mas ainda tem dificuldade em falar. Ao pescoço, usa um lenço colorido da Síria, e prepara-se para contar as histórias que trouxe de um país em guerra.

Chegou a Portugal em março do ano passado com uma bolsa de estudo da Plataforma Global dos Estudantes Sírios, criada por Jorge Sampaio. Veio num grupo de cerca de 40 estudantes sírios que foram distribuídos por várias universidades do país. A guerra civil da Síria fez no mês de março quatro anos, e o último ano foi o mais violento do conflito.

Amal trabalhava numa ONG em Damasco. Deixou a sua cidade natal para fazer um mestrado na área das Finanças e assim fugir ao conflito que já matou milhares de civis e fez milhões de refugiados. Antes do início da guerra, a sua ONG trabalhava com mulheres e jovens. Com a intensificação do conflito passou a prestar ajuda humanitária. Alguns dos colegas de Amal foram mortos enquanto tentavam levar comida e roupa a zonas em necessidade de assistência.

Segundo o mais recente relatório nas Nações Unidas, cerca de três milhões de sírios fugiram para outros países e quase sete milhões foram deslocados das suas casas pela violência e o medo. Quatro em cada cinco sírios vivem em pobreza, 30% em pobreza extrema, sem acesso aos bens mais básicos de subsistência. Este é o retrato de um país devastado pela guerra, esvaziado pelo medo e marcado pelo sofrimento.

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Amal conta o que presenciou com um tom calmo, na sua voz não há indignação. Fala com a resignação dos que já não esperam milagres. Não acredita que o conflito que já fez mais de 215 mil vítimas mortais, segundo números do Observatório Sírio dos Direitos Humanos, vá terminar em breve, nem que a situação na Síria vá melhorar muito nos próximos anos.

“No início”, conta, “não acreditávamos no que estava a acontecer. Começámos a ouvir falar sobre incidentes nos arredores de Damasco e a ler nas notícias confrontos quase todos os fins-de-semana.” Continuava a levar a sua vida normal, apesar de sentir o clima de insegurança, mas a situação foi piorando.

“Não pude voltar para Damasco nem conseguia contactar a minha família, as comunicações deixaram de funcionar, não havia internet, telefone, nada”

Trabalhava na secção das finanças da ONG, e em julho de 2013 teve que se deslocar até Alepo em trabalho. “Devia ficar lá uma semana e depois voltar para Damasco”, lembra, mas “a situação piorou muito” e o aeroporto, que se tornou num campo de batalha entre as forças rebeldes e as tropas do governo de Bashar al-Assad, foi bloqueado. “Não pude voltar para Damasco nem conseguia contactar a minha família, as comunicações deixaram de funcionar, não havia internet, telefone, nada”, conta, acrescentando que ficou em Alepo durante um mês. Para viajar até ao aeroporto teve que contratar dois motoristas, um ia num carro à frente, se houvesse algum problema o segundo voltava para trás.

Quando chegou a Damasco encontrou a sua cidade em plena guerra, desta vez sem hipótese de voltar atrás. “Na minha rua via armas por todo o lado”, diz Amal, havia confrontos à luz do dia. Mas nessa altura ainda não pensava em sair do país, recusava-se a deixar a família.

Mesmo fora da Síria, uma família dividida

Com o agravamento da situação na capital, os dois irmãos decidiram tentar refugiar-se na Suécia. Em 2013 o Conselho de Migração Sueco anunciou que concederia residência permanente aos sírios que pedissem asilo, o que tornou a Suécia num dos destinos mais procurados pelos sírios.

Muitos refugiados tentam chegar à Europa a partir do Egipto em embarcações precárias e sobrelotadas. As viagens são pagas com as poupanças conseguidas, e por vezes com a própria vida. A viagem dos irmãos de Amal custou 10 mil euros, demoraram 20 dias a chegar à Suécia, enquanto na Síria a família aguardava cada dia em ansiedade, à espera de notícias.

Com os irmãos a salvo e pressionada pelos pais, Amal começou a procurar bolsas de estudo na Europa. Não imaginou que aos 30 anos voltaria a estudar. Os pais juntaram-se aos seus dois irmãos na Suécia há cerca de dois meses, e apesar da família sonhar com um regresso à Síria, não tem esperança que possa estar para breve.

“Tínhamos dois apartamentos e um escritório, tudo foi destruído”, relata. Com a casa em ruínas, decidiram alugar um apartamento na zona mais segura da cidade. Mas a segurança pagava-se cara, e o arrendamento do apartamento ia esgotando as poupanças da família. A guerra devastou a economia do país, fez subir brutalmente o desemprego e os preços dos bens essenciais. “Era tudo muito caro” conta, as poupanças “não iam durar muito tempo, perdemos tudo”. Mas Amal lembra que as coisas que perdeu são insignificantes quando pensa nas pessoas que morreram, nos amigos e membros da família que perdeu.

Lembra-se das pessoas que amava e que morreram e entristece, mas pensa que talvez seja melhor assim. “É melhor morrer só uma vez. As pessoas que estão na Síria e que ainda não morreram estão a morrer todos os dias do que as rodeia, os problemas que enfrentam, o medo.”

A denúncia desta morte diária e do fracasso das resoluções das Nações Unidas em proteger os civis e prestar ajuda humanitária são os principais pontos de um relatório publicado este mês por 21 organizações não-governamentais. O relatório intitulado Failing Syria (Falhar à Síria) conclui que no último ano “o acesso humanitário diminuiu” enquanto “mais milhões de pessoas foram deslocadas e precisam de assistência”. Critica sobretudo a ineficácia das três resoluções que foram aprovadas pela ONU no último ano, e a inércia da comunidade internacional face à pior crise humanitária da atualidade.

Da sua janela, Amal viu assassinatos, habitou-se ao som dos disparos e das explosões. Em Portugal, coisas simples como poder encontrar os amigos à noite parecem-lhe maravilhosas. Apesar das dificuldades com a língua portuguesa constituirem por vezes um entrave à sua integração, Amal acha que os portugueses são simpáticos e acolhedores. Sente-se bem recebida, e acima de tudo grata por poder voltar a sentir-se segura.

“Se estivesse hoje na Síria não sei como sobreviveria”, afirma. Também não sabe onde estará daqui a dois anos, quando o seu mestrado terminar, mas diz acreditar que as situações que enfrentou a ensinaram a viver. Gostava de conseguir arranjar um emprego em Portugal ou num outro país europeu, mas o sonho de regressar à Síria permanecerá sempre. Apesar da incerteza em relação ao seu futuro, com coragem e um sorriso luminoso acrescenta: “Estou viva e é o que importa”.