Numa livraria, em frente à pilha de novidades literárias da rentrée, um homem comenta: “Hoje em dia, as pessoas já não lêem.” Ao que uma mulher responde: “Pois não, estão todos a escrever.”

Este diálogo, elaborado pelo cartoonista suíço-libanês Patrick Chapette, ilustra de forma inteligente o caos que se instalou no mundo literário. Todos acham que podem escrever e cada vez são menos os que têm paciência para ler.

Cartoon de Patrick Chapette

Cartoon de Patrick Chapette (www.wditionscontre-ciel.fr)

Os mercados nivelaram tudo por baixo, as grandes editoras lançam no mesmo lote Tolstoi e Pedro Chagas Freitas. Os jornalistas classificam de “obra-prima” Valter Hugo Mãe e dão duas estrelas a Dostoievski. Os romances têm destaque nas montras luminosas e bem pagas, a poesia está nas prateleiras rente ao chão. Tudo embrulhado numa histeria de capas kitsch onde o que vence é sempre aquele que consegue ter tempo de antena televisivo.

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No meio disto, publicam-se livros muito bons, especialmente fora dos grandes grupos editoriais. Livros que não se limitam a encarnar um momento efémero na história do gosto ou que não pertencem ao atoleiro do “entretenimento”, e que, por isso mesmo, têm edições pequenas e desaparecem depressa das livrarias.

Deixamos aqui 10 sugestões de livros que não deve deixar que desapareçam na espuma dos dias. Até porque 2015 promete ser a rentrée literária mais forte dos últimos anos, especialmente no campo do ensaio, género literário que tanta falta faz nestes tempos em que é urgente o regresso de uma cultura humanista.

1. “Ephemera”, coleção do acervo de Pacheco Pereira (Tinta da China)

Coleção Ephemera vai disponibilizar em livro o acervo da biblioteca de Pacheco Pereira

A Coleção Ephemera vai disponibilizar em livro parte do acervo da biblioteca de Pacheco Pereira

O historiador José Pacheco Pereira reuniu ao longo de décadas o Arquivo/Biblioteca Ephemera, um acervo (que já está online) e que é constituído pelas múltiplas aquisições que o próprio tem vindo a fazer desde 1963, e que inclui ainda um vasto conjunto de ofertas.

Trata-se de um acervo generalista, mas com uma forte componente de história política contemporânea. Todo este material está inédito, e com a Tinta da China Pacheco Pereira irá construir uma nova coleção, a Ephemera. O Arquivo da Marmeleira – assim conhecido entre coleccionadores e estudiosos, numa alusão à aldeia ribatejana onde se situa –, constitui um universo de materiais imenso e inédito, que ficará agora progressivamente disponível através desta colecção.

Cartas de amor trocadas entre anónimos

Cartas de amor trocadas entre dois ilustres desconhecidos ao longo de uma década

Os primeiros dois títulos saem já este mês: Amorzinho, volume de correspondência amorosa entre dois ilustres desconhecidos, trocada entre 1934 e 1943, e Autocolantes do PPD: Catálogo 1974-1976, um livro com uma forte componente gráfica, onde a história do partido é revisitada através desta forma de propaganda.

Ainda em 2015 deverá sair um terceiro volume: uma série de fotografias estenopeicas de António Campos Leal.

2. “Dez Razões para a Tristeza do Pensamento”, de George Steiner (Relógio D’Água)

George Steiner continua a ser um dos mais instigantes pensadores sobre a literatura e a cultura ocidentais. Depois de ter publicado, em Abril, o livro Tolstoi ou Dostoievski, a Relógio D’Água prossegue com a publicação dos seus ensaios com este Dez Razões para a Tristeza do Pensamento.

Partindo da ideia de que a tristeza é o pano de fundo da natureza e da vida humana, Steiner elaborou dez teses sobre a tristeza inerente à condição do Homem como animal que pensa. Numa trajetória que vai dos estoicos Séneca e Marco Aurélio à neurofisiologia e à física quântica, o autor analisa a natureza dramática do pensamento humano. E procura refletir sobre questões como: Há algo além do pensamento que seria impensável? Podemos viver sem pensar em tudo? Será que o pensamento é infinito? Quais são as relações entre pensamento e linguagem, e entre o pensamento e eu? Como chegou o humano a pensar Deus?

3. “A Língua Resgatada”, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Também para breve está o lançamento do primeiro volume da trilogia autobiográfica de Elias Canetti: A Língua Resgatada – História de uma juventude. Nascido na Bulgária sob o domínio otomano, filho de judeus sefarditas espanhóis, este prémio Nobel da Literatura (1981) viveu os seus primeiros 16 anos de vida entre quatro idiomas e contactando com mais seis línguas e universos culturais.

A partir daí, transformou-se num escritor de língua alemã (a “língua da ternura”, como ele lhe chamava) e num pensador singular, um erudito que refletiu sobre as mais diferentes áreas das sociedades humanas, tendo sempre a linguagem como base. Massa e Poder, um dos seus ensaios mais importantes, foi publicado no ano passado pela Cavalo de Ferro.

A Língua Resgatada é o primeiro tomo de uma história pessoal do século XX onde, nos seus anos de infância e adolescência, o autor vai descobrindo o mundo através de um sobreinvestimento nas palavras e na literatura – e onde a sua vida se vai entretecendo com as histórias do quotidiano, até ao despertar de um pensamento consciente da profundidade e responsabilidade de cada palavra.

 4. “Homo Spectator”, de Marie-José Mondzain (Orfeu Negro)

Se as obras de Steiner e Canetti se debruçam sobre o poder da palavra, em especial da palavra escrita, este Homo Spectator, da filósofa francesa Marie-José Mondzain, é uma reflexão sobre as imagens e sobre o seu poder na construção do humano.

Homo Spectator, um ensai

“Homo Spectator”, um ensaio sobre a relação e humano com a imagem. No princípio era o verbo? Não, no princípio era a imagem

É porque estamos separados das coisas que podemos vê-las e depois simbolizá-las. E é da capacidade de simbolizar o mundo que nasce o Humano. Logo, o nascimento do observador e depois da sociedade do espetáculo são apenas momentos de uma história longa e sinuosa.

Das mãos impressas com pigmentos nas paredes das cavernas à manipulação televisiva das emoções, a imagem é hoje parte integrante da condição humana. Através do poder dos media e da própria arte, a imagem tem o poder de definir uma consciência política e de redefinir a nossa relação com o outro – a questão dos refugiados do Médio Oriente que chegam às costas da Europa tem-nos mostrado isso à saciedade.

Antes, muito antes, de haver verbo, já havia árvores que se refletiam nos lagos. Só depois veio a palavra para nomear essa separação fundamental e constitutiva do humano. Sem imagens, defende Mondzain, não existiriam palavras. E uma das grandes questões deste ensaio, atualíssimo, é precisamente como devolver às imagens esse seu poder criador (imaginação) e retirar-lhes o seu poder destrutivo.

5. “O Salão Vermelho”, de August Strindberg (E-Primatur)

O Salão Vermelho, romance de Strindberg, traduzido do sueco pela E-Primatur

O Salão Vermelho, romance de Strindberg, traduzido do sueco pela E-Primatur

August Strindberg, pai da modernidade da literatura escandinava, mestre de Ingmar Bergman ou de Stig Dagerman, tem uma importância na literatura europeia que não coincide com a falta de interesse que as editoras portuguesas têm tido pela sua obra. Só o teatro tem tentado colocar em cena algumas das suas peças. Agora, a nova E-Primatur estreia-se com o romance que o projetou para fora da sua Suécia natal: O Salão Vermelho.

Neste livro, tal como em quase todas as suas obras, Strindberg esmaga com violência todas as classes sociais, dos aristocratas aos criados, dos homens do povo aos homens políticos, das almas caridosas às egoístas. Ninguém é poupado e ninguém escapa à sua natureza eminentemente perversa e auto-destrutiva.

6. “O Selvagem da Ópera”, de Rubem Fonseca (Sextante)

O anti-herói da língua portuguesa, Rubem Fonseca, continua, para nossa grande alegria a ser editado em Portugal pela Sextante. Homem de poucas palavras e pouco circo, é um ficcionista dos maiores do nosso tempo. Sem medo da violência, sem ceder aos bons sentimentos, nem ao politicamente correto, Rubem é aquele que diz: “Em literatura não há sinónimos, há a palavra certa.”

Novo romance de Rubem Fonseca, pela Sextante

Novo romance do escritor brasileiro Rubem Fonseca, pela Sextante.

Sobretudo para quem está cansado do realismo mágico que tem assolado a literatura portuguesa nas últimas décadas,vale a pena entrar no mundo sem complacências e sem redenção do escritor brasileiro.

O Selvagem da Ópera é um híbrido onde se cruzam cinema, música, romance e autobiografia. O autor dá a conhecer a vida de Antônio Carlos Gomes, o maior compositor lírico brasileiro de sempre, ao mesmo tempo que faz um retrato do Brasil e de Itália na segunda metade do século XIX, numa viagem que passa ainda por território português.

7. “O País Fantasma”, de Vasco Luís Curado (D. Quixote)

Continuando nos territórios do romance realista e violento, O País Fantasma, de Vasco Luís Curado, é um dos livros mais atuais desta rentrée. Quando passam 40 anos sobre a descolonização e a entrada de meio milhão de refugiados e retornados em Portugal, naquela que foi a maior ponte aérea da história da aviação civil, o autor conta-nos esse momento trágico e épico da nossa história recente.

Tomando como grande inspiração Guerra e Paz, de Tolstoi, Vasco Luís Curado narra esse êxodo, que marcou o fim de um império colonial de 500 anos, de uma forma totalmente nova, onde cada personagem está a viver simultaneamente a sua história e a História, está a viver o seu tempo e o para além dele.

País Fantasma é o romance do autor de Gare do Oriente e Vida Verdadeira

“O País Fantasma” é o título do novo romance do autor de “Gare do Oriente” e “A Vida Verdadeira”

O País Fantasma é um livro sobre a violência profunda, a loucura, o medo e o desejo de sobrevivência que habita o humano e o faz erguer impérios e sonhar revoluções. E é, acima de tudo, um tributo aos homens e mulheres que fugindo de uma guerra souberam reinventar as suas vidas.

8. “Arranha-céus”, de J.G. Ballard (Elsinore, 20|20)

O mestre das distopias nas sociedades modernas, um dos espíritos que mais audaciosamente soube captar a erótica espectral entre os corpos e as máquinas, e que, face à evolução das tecnologias, está cada vez mais atual, vai ter um dos seus romances publicado pela Elsinore, uma chancela do grupo editorial 20|20.

Arranha-céus, romance de J.B Ballard, escrito em 1975. Ums distopia num condominio de luxo, pela Elsinore

Arranha-céus, romance de J.B Ballard, escrito em 1975. Uma novela distópica num condomínio de luxo, pela Elsinore.

High Rise, no original, foi escrito em 1975, e decorre no espaço fechado de um arranha-céus, condomínio fechado de onde ninguém precisa de sair para o exterior. Criado o ambiente claustrofóbico e pós-histórico típico do universo ballardiano, este prédio é um simulacro da vida social onde tudo parece correr bem até começarem a surgir os primeiros indícios de crime que vão transformar o arranha-céus numa paisagem primitiva, onde o humano dá lugar a um bestiário de predadores.

O romance foi adaptado ao cinema e deve chegar às salas ainda este ano, com a assinatura de Ben Wheatley. No próximo ano, a Elsinore conta reeditar Crash, celebrizado no filme homónimo de David Cronenberg.

9. “Anonimato”, de Diogo Vaz Pinto (&etc)

Diogo Vaz Pinto, poeta, editor e jornalista, regressa aos livros depois de Bastardo (2011) e Nervo (2012), ambos publicados na Averno. Anonimato colige vários textos poéticos que o autor escreveu nos últimos anos e que agora serão dados ao público pela mão de Vítor Silva Tavares. Com uma escrita furiosa, urgente e instigadora, Diogo Vaz Pinto é, sem dúvida, um dos poetas mais promissores da nova geração. O livro deverá ser publicado em Outubro.

10. “Romance”, de Helder Macedo (Presença)

Em Novembro, mês em que completa 80 anos, Helder Macedo regressa ao melhor da sua criação: a poesia, e a Editorial Presença faz-nos acreditar que ainda está viva e que ainda publica grande literatura.

Romance é o título deste longo poema, uma catábase (descida aos infernos) onde nos cruzamos com os fantasmas de Orfeu e Eurídice, Hádes e Perséfone, auto-estradas nos subúrbios e mulheres tão antigas como os tempos. Erudito e pungente, Romance é uma das melhores obras de sempre de Helder Macedo e o corolário de uma vida dedicada à palavra.