(Este artigo foi publicado pela primeira vez em outubro de 2015 e agora republicado a propósito do Halloween de 2019)
Todos os anos, na manhã de 1 de novembro, Maria do Céu sai de casa para entrar no cemitério de Taveiro, em Coimbra. Ao lado do portão de metal, que tem a cruz de Cristo num lado e uma caveira do outro, há sempre uma florista com plantas da época. Maria do Céu é cliente fiel da florista e compra orquídeas, gipsófilas, fetos reais e crisântemos. Um grande ramo de flores, suficiente para homenagear todos os membros da família que já morreram.
Enquanto cumpre o ritual — limpar as campas de mármore, acender as velas vermelhas, colocar as plantas na jarra e rezar —, um grupo de crianças percorre as ruas da aldeia do Arrabal, em Leiria. São amigos de vizinhança, alguns primos ou irmãos, e vão com sacos de pão feitos na escola bater à porta dos vizinhos. “Oh tia, dá bolinho?”, costumam gritar. E do outro lado da porta, que se abre, chegam rebuçados, castanhas, algumas moedas (os tostõezinhos) ou então o dito bolinho, feito com frutos secos e erva doce.
É assim — com pequenas variações ao longo do País –, que se vive o Dia de Todos os Santos, em Portugal. Ou se vivia, até 2012, ano em a crise obrigou a diminuir o número de feriados – civis e religiosos -, e a Igreja cedeu o seu 1 de novembro. Agora, o hábito é cumprir estes rituais no domingo anterior à data. Antes as campas, de terra, eram cobertas por completo de flores, de forma muito semelhante ao que acontece na celebração do Dia dos Mortos no México.
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Mas quando começou esta celebração?
A origem do Dia de Todos os Santos
Para chegarmos à implementação do Dia de Todos os Santos é preciso recuar ao tempo dos celtas. Este povo que passou pelo território que é hoje Portugal celebrava o arranque do inverno com dois objetivos: apaziguar os poderes do outro mundo – isto é, as forças do Além, onde estariam as almas dos mortos – e pedir a abundância nas colheitas futuras.
Quem o explica é o padre Anselmo Borges, teólogo e professor da Universidade de Coimbra. Nesta festa, a Samhain, os celtas recordavam os antepassados “concentrando o sagrado num tempo e lugar determinados”. Depois acendiam o “primeiro fogo”, que tinha um outro significado: a vida.
O Samhain era celebrado aquando da chegada do inverno, quando a natureza parecia estar “adormecida”. À época, os celtas usavam um calendário lunar que dividia o ano em duas épocas, quente e fria. Depois de tempos de fertilidade, era altura de manter a esperança em boas colheitas. Como? Acendendo a tal fogueira, contrariando o ambiente sombrio da noite que chegava cedo, organizando verdadeiros banquetes e bebendo “até perder a razão”, como descreve o padre Anselmo Borges. Era o réveillon da fé celta.
Este tipo de celebração não era, ainda assim, exclusivo dos celtas: também os romanos organizavam os saturnais, que funcionavam como uma passagem de ano espiritual, com grandes festas com muita comida e diversão.
O Dia de Todos os Santos nasceu quando Gregório IV estava em frente à Igreja Católica.
Estávamos no ano 835 d.C.. O processo de Cristianização – conversão ao credo cristão – continuava através da proliferação dos ensinamentos dispostos na Bíblia. Foi por isso que o Papa Gregório IV escolheu o dia 1 de novembro para celebrar todos aqueles que morreram com “uma vida plenamente realizada, que são exemplos de vida e estão na glória de Deus”. Neste dia, acredita-se que a fronteira entre a vida na Terra e a vida divina estava enfraquecida e portanto podia haver “contacto entre os vivos e os mortos do Além”. É uma forma de homenagear “os heróis da fé”, acrescenta o padre.
Este é um capítulo da história, mas a criação do Dia de Todos os Santos também juntou o útil ao agradável. De acordo com a explicação do padre Anselmo Borges, os cristãos já celebravam os mártires, aqueles que celebravam até à morte a obra e a palavra de Jesus, no século II. A Igreja Católica festejava a vida de um santo em cada dia do ano e este era um modo de venerar aqueles que “intercediam a Jesus pelos humanos”. A certa altura, o número de santos aumentou (em consequência da perseguição dos romanos) e então foi necessário criar um dia em que se celebrassem todos eles.
Halloween: um Dia de Todos os Santos “made in USA”
Hoje, o Dia de Todos os Santos está influenciado por um fenómeno americano cuja celebração atravessou o Oceano até chegar à Europa. O Halloween tem uma origem semelhante à festividade católica e surgiu nos Estados Unidos também por via dos celtas, ou seja, depois da emigração em massa dos irlandeses, povo de origem celta, para o continente americano no século XIX. Mas aqui, a festa ganhou outro cunho: a crença de que a barreira entre vivos e mortos está mais vulnerável nesse dia levou os americanos a procurar celebrar o contacto com forças sobrenaturais negativas, mais sombrias, misteriosas e maléficas.
Na noite de 31 de outubro para 1 de novembro, as crianças americanas mascaram-se de criaturas assustadoras – como bruxas, fantasmas ou zombies, por exemplo – e também elas tocam à campainha dos vizinhos em busca de comida. Dizem “doçura ou travessura” e os vizinhos decidem se abrem a porta. Mas se não o fizerem com recompensas (leiam-se doces), habilitam-se a ver ovos atirados contra a janela na manhã seguinte. Para se entender melhor a relação evidente entre o Halloween e o Dia de Todos os Santos, olhe-se para a origem da palavra: “Halloween” vem da expressão “All Hallows Eve”, isto é, “Véspera de Todos os Santos”.
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É também dos celtas que as celebrações do Halloween herdaram o típico jogo americano em que as pessoas tentam apanhar só com os dentes uma maçã dentro de uma taça cheia de água. Antigamente, os celtas acreditavam que o contacto com as entidades divinas podiam ajudá-los a entender o futuro e usavam esse jogo para tentar adivinhar com quem iriam casar.
E o Dia dos Finados?
Mas a festa não acaba aqui: a 2 de novembro ainda é dia de celebrar a vida e a morte. Apesar de as pessoas aproveitarem o antigo feriado de dia 1 ou o domingo mais próximo a este dia para homenagear os entes queridos que já partiram, o Dia dos Finados é oficialmente a 2. Com uma pequena diferença: é que os finados são aqueles que estão no purgatório à espera de julgamento antes de chegarem ao céu. Esta celebração foi implementada pelos monges de Cluny, em França, no século IX. A New Catholic Encyclopedia afirma que “durante toda a Idade Média era popular a crença de que, nesse dia, as almas no purgatório podiam aparecer em forma de fogo-fátuo, bruxa ou sapo”.
Não existe nenhuma referência bíblica ao Dia de Todos os Santos, isto é, nenhuma passagem da Bíblia fala claramente sobre a necessidade de se implementar um dia para celebrar os “heróis da fé”. Mas há passagens em que a Bíblia aconselha os cristãos a evitar rituais que os coloquem em contacto direto com os mortos. “Como é que o certo pode ter alguma coisa a ver com o errado? Como é que a luz e a escuridão podem viver juntas? Como podem Cristo e o Diabo estar de acordo? O que é que um cristão e um descrente têm em comum?”, pode ler-se no livro de Coríntios.
Em Portugal, o dia 1 de novembro traz um outro marco da história. Foi neste dia, em 1755, que um grande terramoto sacudiu Lisboa e destruiu grande parte da capital, quando milhares de pessoas assistiam às missas do Dia de Todos os Santos. A partir daí, e para assinalar a data que destruiu as casas de várias pessoas atirando-as para a pobreza, as crianças corriam as ruas a pedir “pão por Deus” para receber comida.