Tudo começou quando o avô contou a Andrés Ruzo, quando este ainda era uma criança, uma história de encantar sobre as conquistas espanholas e sobre um rio, no meio da selva amazónica, que ferve como se houvesse fogo. Anos mais tarde Ruzo tornou-se geólogo, mas nunca acreditou que aquela história fosse mais que uma conversa de encantar.

Mesmo assim, as dúvidas perseguiam-no e o agora colaborador da National Geographic embrenhou-se na selva e foi procurar o tal rio misterioso. E encontrou-o. Afinal não era mito. O rio é mesmo real e ferve de facto – as águas têm uma temperatura média de 86ºC.

Mas quem melhor para contar esta epopeia do que o próprio Andrés Ruzo? Foi o que ele fez, em 2014, quando contou tudo numa conferência durante o famoso “TED Talk”, que agora publicou as suas palavras. A transcrição pode-se ler aqui.

andrés ruzo ted

TED

A conferência, com o título “Como encontrei o mítico rio fervente na Amazónia”, tem também a tradução para português que agora transcrevemos:

“Quando eu era miúdo, em Lima, o meu avô contou-me uma lenda da conquista espanhola do Peru. Atahualpa, o imperador dos incas, tinha sido capturado e morto. Pizarro e os seus conquistadores enriqueceram e a fama da sua conquista e glória chegara a Espanha e provocava novas vagas de espanhóis, sedentos de ouro e de glória. Chegavam às cidades e perguntavam aos incas: ‘Onde há outra civilização que podemos conquistar?’; ‘Onde há mais ouro?’

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E os incas, por vingança, diziam-lhes: ‘Vão à Amazónia. Encontram lá todo o ouro que quiserem. Há uma cidade chamada Paititi — em espanhol, El Dorado — toda feita de ouro’.

Os espanhóis embrenhavam-se na selva, mas os poucos que regressavam contavam histórias, histórias de poderosos xamãs, de guerreiros com setas envenenadas, de árvores tão altas que tapavam o sol, de aranhas que comiam pássaros, de cobras que engoliam homens inteiros e de um rio que fervia.

Tudo isto ficou na minha memória de criança e os anos passaram. Estava a fazer o meu doutoramento na Universidade Metodista Meridional, tentando compreender a energia geotérmica potencial do Chile e lembrei-me desta lenda. Comecei a pensar nesta pergunta: ‘Será que o rio fervente existe?’

Perguntei a colegas das universidades, ao governo, às empresas petrolíferas, empresas de gás e de minas, e a resposta foi um não unânime. E fazia sentido. Há rios ferventes no mundo, mas, geralmente, estão associados a vulcões. É preciso uma poderosa fonte de energia para produzir uma manifestação geotérmica de tão grande escala. Como podemos ver aqui, pelos pontos vermelhos, que são vulcões, não temos vulcões na Amazónia, nem na maior parte do Peru. Portanto, não é de esperar ver um rio fervente.

Quando contei esta história ao jantar, com a família, a minha tia diz-me: ‘Não, Andrés, eu estive lá, já nadei nesse rio’.

Depois, o meu tio intervém: ‘Não, Andrés, ela não está a brincar, só podemos nadar nele, depois duma grande chuvada. Ele está protegido por um poderoso xamã. A tua tia é amiga da mulher dele’.

Apesar de todo o meu ceticismo científico, encontrei-me a caminho da selva, guiado pela minha tia, a mais de 700 km do centro vulcânico mais próximo. Para ser franco, estava a preparar-me mentalmente para observar a lendária ‘corrente quente da Amazónia’.

Mas, então… ouvi qualquer coisa, um ímpeto surdo que se tornava cada vez mais forte à medida que nos aproximávamos. Parecia o som das ondas do oceano, num rebentar constante. Quando nos aproximávamos, vi fumo, vapor, a subir por entre as árvores. E então, vi isto.

Agarrei imediatamente no termómetro, e as temperaturas médias do rio eram de 86º centígrados. Não são propriamente os 100º C da água a ferver, mas andavam muito perto. O rio corria quente e rápido. Segui pelo rio acima e fui guiado pelo aprendiz do xamã até ao local mais sagrado do rio. E, coisa mais estranha, na nascente é uma corrente fria. Aqui, neste local, é a terra de Yacumama, a ‘mãe da água’, um gigantesco espírito de serpente que dá à luz água quente e água fria. Encontramos aqui uma nascente quente, misturando-se com a água da corrente fria por baixo das suas maxilas maternais protetoras. dando assim vida às lendas.

Na manhã seguinte, acordei… e pedi um chá. Deram-me uma caneca, um saquinho de chá e apontaram para o rio. Para minha surpresa, a água era limpa e tinha um sabor agradável, o que é um pouco estranho nos sistemas geotermais.

O espantoso é que os locais sempre conheceram este sítio e eu não fora o primeiro forasteiro a vê-lo. Fazia parte da sua vida habitual. Bebem esta água. Respiram o vapor. Cozinham com ela, lavam tudo com ela, até fazem medicamentos com ela.

Fui ter com o xamã. Ele parecia uma extensão do rio e da selva. Perguntou quais eram as minhas intenções e ouviu com toda a atenção. Depois, para meu grande alívio — eu estava muito nervoso, para ser franco — começou a desenhar-se-lhe na cara um sorriso e ele riu-se.

Eu tinha recebido a bênção do xamã para estudar o rio, na condição de que, depois de colher amostras da água, e de as analisar no meu laboratório, fosse onde fosse que ele se situasse, eu voltasse a despejar a água no solo para que, conforme disse o xamã, ‘a água encontrasse o seu caminho para casa’.

Desde aquela primeira visita em 2011, tenho lá voltado todos os anos e o trabalho de terreno tem sido arrebatador, exigente e, por vezes, perigoso. Até já foi apresentada uma reportagem na National Geographic Magazine. Eu fiquei preso num rochedo do tamanho de uma folha de papel, de sandálias e bermudas, entre um rio a 80º C e uma fonte quente parecida com esta, perto dos 100º C. Por cima, era a floresta tropical da Amazónia. Uma chuva diluviana, não conseguia ver nada. O diferencial das temperaturas tornava tudo branco. Era uma névoa cerrada. Intensa.

Ao fim de anos de trabalho, vou apresentar os meus estudos geofísicos e geoquímicos para publicação. Gostava, hoje, de partilhar convosco, aqui no palco TED, pela primeira vez, algumas das descobertas.

Primeiro que tudo, não se trata de uma lenda. Surpresa!

Quando iniciei a investigação, as imagens por satélite eram de resolução demasiado baixa para ficarem nítidas. Não havia bons mapas. Graças ao apoio da equipa do Google Earth, agora tenho isto. E não só, o nome indígena do rio, Shanay-timpishka, ‘aquecido com o calor do Sol’, indica que não sou o primeiro a interrogar-me porque é que o rio ferve, e mostra que a humanidade sempre tentou explicar o mundo à sua volta.

Então, porque é que o rio ferve?

(Som de água a borbulhar)

Levei três anos para conseguir esta filmagem.

Fontes quentes a partir de fendas. Tal como temos sangue quente a correr pelas veias e artérias, também a Terra tem água quente a correr pelas fendas e falhas. Quando essas artérias assomam à superfície — essas artérias terrestres — obtemos manifestações geotérmicas: fumarolas, fontes quentes e, no nosso caso, o rio fervente.

Mas o que é incrível é a escala deste local. Da próxima vez que andarem na estrada, pensem nisto. O rio tem uma largura maior do que uma estrada de duas faixas durante a maior parte do seu percurso. Corre quente durante 6,24 km. Verdadeiramente impressionante. Há piscinas térmicas maiores do que este palco TED, e aquela cascata que ali veem tem seis metros de altura, toda ela com água quase a 100º C.

Fizemos o mapa das temperaturas ao longo do rio, o que foi, de longe, a parte mais difícil do trabalho de campo. Os resultados são espantosos. Peço desculpa aos geocientistas por me entusiasmar. Mostrou este comportamento espantoso. Vejam bem, o rio começa frio. Depois aquece, arrefece, aquece, volta a arrefecer, aquece novamente e depois faz esta bela curva de decaimento até se espalhar neste rio frio.

Eu sei que nem todos aqui são cientistas geotérmicos, por isso vou trocar isto por miúdos. Toda a gente gosta de café. Não é? Ótimo. Uma chávena normal de café: 54º C, um café em chávena aquecida: 60º C. Posto em termos de estabelecimento de café, o rio fervente porta-se assim. Ali, obtemos um café quente. Aqui, um café em chávena aquecida. Podemos ver que há ali um grande pico onde o rio ainda é mais quente do que o café em chávena aquecida. E isto são temperaturas médias da água. Fizemos as medições na estação seca para garantir as mais puras temperaturas geotérmicas.

Mas há um número mágico que não aparece aqui. Esse número é 47º C, porque é aí que as coisas começam a doer. Sei disso por experiência própria. Acima desta temperatura, não queremos entrar na água. Precisamos de ter cuidado. Pode ser mortal.

Vi todo o tipo de animais a cair lá dentro e o que me chocou foi que o processo é quase sempre o mesmo. Eles caem e a primeira coisa a desaparecer são os olhos. Os olhos cozem muito depressa. Ficam com esta cor branca de leite. A corrente vai-os levando. Eles tentam nadar, mas a carne vai cozendo até ao osso porque está muito quente. Eles vão perdendo forças, perdendo forças, até que chegam a um ponto em que a água quente lhes entra pela boca e eles cozem por dentro.

Somos mesmo sádicos, não somos? Meu Deus! Deixemo-los a marinar durante mais um bocado. Mas estas temperaturas são mesmo espantosas. São semelhantes a coisas que já vi em vulcões por todo o mundo e até em super-vulcões como Yellowstone.

Mas a coisa é esta: os dados mostram que o rio fervente existe independente do vulcanismo. Não tem origem magmática nem vulcânica, e, repito, a mais de 700 km do centro vulcânico mais próximo.

Como é que pode existir um rio fervente como este? Durante anos, perguntei a especialistas geotérmicos e vulcanólogos, e continuo sem encontrar outro sistema geotérmico não vulcânico desta dimensão. É único. É especial, à escala global. Mesmo assim, como é que funciona? Donde vem este calor? Ainda falta fazer muita investigação para situar melhor o problema, para compreender melhor o sistema, mas, pelo que os dados nos dizem hoje, parece ser o resultado de um enorme sistema hidrotérmico.

Basicamente, funciona assim: Quanto mais avançamos para o interior da Terra, mais elevada é a temperatura. Referimo-nos a isso como o gradiente geotérmico. As águas podem vir de tão longe como os glaciares dos Andes, mergulharem profundamente na terra e voltarem à superfície sob a forma de um rio fervente depois de terem aquecido sob o gradiente geotérmico, tudo isto devido a uma situação geológica única.

Descobrimos que no rio e à sua volta — isto é a trabalhar com colegas, o Dr. Spencer Wells, da National Geographic, e o Dr. Jon Eisen, da Universidade da Califórnia, Davis — sequenciámos geneticamente as formas de vida extremófilas que vivem no rio e à sua volta, e encontrámos novas formas de vida, espécies únicas que vivem no rio fervente.

Mas, apesar de todos estes estudos, de todas as descobertas e lendas, mantém-se a pergunta: ‘Qual é o significado do rio fervente? Qual é o significado desta nuvem fixa que paira sempre sobre este pedaço da selva? Qual é o significado de um pormenor numa lenda de infância?’

Para o xamã e para a sua comunidade, é um local sagrado. Para mim, enquanto geocientista, é um fenómeno geotérmico único. Mas, para os madeireiros ilegais e criadores de gado, é apenas mais um recurso a explorar. Para o governo peruano, é apenas mais uma faixa de terras desprotegidas, prontas para urbanização.

O meu objetivo é garantir que, quem quer que controle estas terras, compreenda a singularidade e o significado do rio fervente. Porque é esse o problema, o do significado. E a coisa é, nós é que definimos o significado. Somos nós. Temos esse poder. Somos nós que traçamos essa linha entre o sagrado e o trivial. Nesta época, em que tudo parece estar desenhado, medido e estudado, nesta época da informação, recordo-vos que as descobertas não são feitas no buraco negro do desconhecido mas no ruído branco de dados esmagadores.

Falta explorar muita coisa. Vivemos num mundo incrível. Portanto, saiam para a rua. Sejam curiosos. Porque vivemos num mundo em que os xamãs ainda cantam aos espíritos da selva, em que há rios que fervem e em que as lendas adquirem vida.

Muito obrigado.”