Mossack Fonseca. Panamá. Empresas offshore. Fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção. Eis um conjunto de palavras que o leitor associa quase como sinónimos desde o último mês de abril. A culpa é de Bastian Obermayer, 37 anos, e de Frederik Obermaier, 32 anos. Foram estes jornalistas alemães de investigação do Süddeutsche Zeitung (SZ) que tiveram acesso à maior fuga de informação da história do jornalismo mundial e estiveram na origem do caso dos ‘Panama Papers’. São mais de 2,6 terabytes de informação, mais de 11,5 milhões de documentos, do escritório de advogados Mossack Fonseca que foram parar às suas mãos através de uma fonte anónima chamada John Doe — o ‘Senhor Fulano de Tal’ em português. E que, devido à partilha que os chamados ‘irmãos’ Obermay/ier promoveram com o ICIJ – International Consortium of Investigative Journalists, parou o mundo depois de uma investigação global que durou mais de um ano e envolveu mais de 70 jornalistas dos principais jornais do mundo.

A propósito do lançamento em Portugal do livro “Panama Papers – A História de um Escândalo Mundial” (Editora Objectiva, 2016), o Observador entrevistou Frederik Obermaier via Skype sobre as consequências do caso que ajudou a descobrir. Aqui um resumo da conversa, assim como excertos do livro dos Obermay/ier.

A administração Obama calculava em 2015 que iria perder para os paraísos fiscais cerca de 63.4 biliões de dólares (cerca de 55.6 biliões de euros) em receitas fiscais relacionadas com impostos e taxas sobre empresas. Em 2013, uma ONG chamada Oxfam estimou que os paraísos fiscais escondiam cerca de 14 biliões de euros, sendo que 9,5 biliões estavam em zonas fiscais especiais na Europa como o Luxemburgo, Mónaco, Andorra, etc. O que deve mudar na Europa e nos Estados Unidos para combater de forma mais eficaz a fraude fiscal e o branqueamento de capitais?

Temos de ter noção de que, ao falarmos de paraísos fiscais, não estamos só a falar de países como o Panamá ou Ilhas Virgens Britânicas. Alguns dos maiores paraísos fiscais estão em solo dos Estados Unidos — como por exemplo, nos estados do Nevada e do Wyoming. Aqui na Europa também temos paraísos fiscais no Luxemburgo ou em Jersey (ilha que pertence Reino Unido). Se os políticos querem defender maior transparência e combater os paraísos fiscais, podem começar pelo seu próprio quintal. Obama pode começar pelos Estados Unidos, assim como os políticos europeus podem começar pela União Europeia, para defender uma maior transparência. Só depois devem falar de outros países.

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Tens visto alguns sinais disso?

Depois das primeiras revelações dos Panama Papers, o presidente Obama defendeu que temos que lutar por mais transparência mas falou, não só nos paraísos fiscais fora dos Estados Unidos, mas também levantou o problema daqueles que estão nos Estados Unidos. Penso que esse é um bom ponto de partida.

E a Europa? Tivemos o Lux Leaks em que o atual presidente da Comissão Europeia, enquanto líder do governo luxemburguês, esteve indiretamente envolvido num caso de benefícios fiscais considerados ilegais. A Comissão Europeia está mesmo comprometida na luta contra os offshore?

Nem por isso. Há políticos, a um nível nacional e europeu, que levantaram a sua voz a favor de maior transparência. Mas não vejo isso na Comissão Europeia e no Parlamento Europeu. Por exemplo, a comissão parlamentar sobre o caso Lux Leaks fez um trabalho fantástico… Mas, ao mesmo tempo, vimos que algumas pessoas não queriam que a comissão trabalhasse de forma eficaz, abrandando o processo de constituição da comissão ou impedindo mesmo a transmissão de informações. Isso foi um problema. No que diz respeito aos ‘Panama Papers’, terei todo o gosto em colaborar com a Comissão de Inquérito Parlamentar do Parlamento Europeu porque têm instrumentos legais para desenvolver a informação.

No entanto, é importante referir, que tem-se verificado uma melhoria nas regras impostas pela União Europeia, não só ao nível de medida concretas de divulgação do património dos titulares de cargos políticos e das respetivas famílias, como também ao nível de uma maior transferência do sistema financeiro. Achas que é necessário criminalizar a utilização de offshores ou basta ter um sistema em que a transparência é obrigatória para os titulares dessas empresas e em que exista uma troca de informação eficaz entre os diferentes estados?

Bem…

Não é ilegal ter uma offshore. O que pode ser ilegal é o uso que o titular dá à sua empresa offshore…

O uso de uma empresa offshore pode ter razões legais mas nem sempre é legítimo. O presidente Obama disse uma coisa muito interessante acerca dos ‘Panama Papers’ ao afirmar que muitas das matérias que revelamos são legais mas não são legítimas. Se calhar, é melhor começarmos a pensar em mudarmos as nossas leis. No entanto, eu vejo razões legítimas para usar uma sociedade offshore. Por exemplo, ouvi há umas semanas de umas pessoas que conheço que uma empresa offshore pode ser útil para pessoas de países onde não é normal a mulheres herdarem algo do pai, de forma a que seja possível que as filhas possam receber a mesma parcela da herança que os filhos. Na minha opinião, essa é uma razão legítima para ter uma sociedade offshore.

Mas, e este é um grande “mas”, não vejo muitos casos como este nos ‘Panama Papers’. O que vi é uma enorme quantidade de empresas que usaram os offshore para fugirem aos impostos, para branquearem capitais, entre outras situações. Devemos ter bem a noção disso. Se alguma vez falares com um dono de uma sociedade offshore, deves perguntar: “Porquê? Porque não é possível registar esta empresa, por exemplo, em Portugal?” E aguarda a resposta.

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Os bancos alemães e a Mossack Fonseca

“Na manhã de 24 de fevereiro de 2015, polícias, procuradores e inspetores das Finanças param em frente ao Commerzbank, em Frankfurt. O segundo maior banco alemão opera numa das torres de escritórios mais visíveis da zona bancária de Frankfurt, de noite as três torres iluminadas pelo amarelo dos holofotes erguem-se como três dedos indicadores apontados em direção ao céu. A arquitetura é um aviso: aqui não há espaço para dúvidas, prudência ou escrúpulos. Aqui está o poder. Na manhã de terça-feira, porém, alguns dos banqueiros têm de abdicar por breves instantes desse poder, porque os inspetores do recé-criado «Grupo de Investigação do Crime Organizado e da Evasão Fiscal» estão a recolher uma série de documentos acerca dos investimentos encobertos e secretos. (…) Deste modo, o Commerzbank criava empresas fantasma no Panamá para os seus clientes que, por seu turno, só aparentemente eram titulares das contas. E, como as empresas offshore não pertencem à União Europeia, a Diretiva Europeia não se aplicava, pelo que os lucros ficavam livres de impostos” (nomeadamente 35% de imposto. (…) “Chama-se a isto fraude fiscal, e quando um banco a pratica em grande estilo, pode encarar-se quase como um crime perpetrado por uma quadrilha. Por isto é que a unidade especial que naquela terça-feira interveio em Frankfurt também ostenta a expressão «Crime Organizado». (…) A Mossack Fonseca é, portanto, quase oficialmente uma parte do crime organizado. Tal como o Commerzbank e muitos outros grandes bancos alemães. Será que podemos escrever máfia financeira? Se calhar, devíamos mesmo”.

(Págs. 52 e 53 do “Panama Papers – A História de um Escândalo Mundial” (Edição Objectiva, 2016).

Um dos aspetos mais interessantes do vosso livro prende-se com as descobertas que fizeram sobre sistemas de fraude fiscal promovidos por diversos bancos alemães, como o Commerzbank, Desdner Bank e outros. Ou a questão dos 500 milhões de euros do ‘saco azul’ da Siemens usados para alegados atos de corrupção na América do Sul. Isso acaba por ser relevante para os cidadãos da Europa do Sul, nomeadamente portugueses, que têm conhecido uma política dura de austeridade apoiada pela Alemanha devido a uma alegada superioridade moral da Europa do Norte sobre a Europa do Sul — é assim que os muitos portugueses interpretam as declarações de governantes alemães sobre a austeridade. A Alemanha tem moral para criticar outros países da UE na área do combate à corrupção e à fraude fiscal?

Olhando para os ‘Panama Papers’ não há grandes diferenças entre os bancos alemães, bancos dos países nórdicos ou do sul da Europa. Muitos deles, centenas de bancos, trabalham fora do sistema. Isso é um problema global, não é um exclusivo europeu. Talvez seja mais fácil ao políticos alemães falarem agora em corrupção noutros países mas ninguém pode dizer que a Alemanha está livre de casos de corrupção. Temos visto inúmeros casos nos últimos anos, nomeadamente uma situação em que houve uma suspeita baseada em motivos fortes de que grandes empresas alemãs subornaram de titulares de cargos públicos de outros países. A corrupção não é um problema de um país ou de uma determinada parte do mundo — é um problema global. E a Alemanha faz parte dele.

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Como o regime sírio furou as sanções da comunidade internacional

“O caso Makhlouf torna visível por que motivo a existência de empresas-fantasma anónimas é um problema crucial para milhões de pessoas: porque podem a ajudar ditadores a evitar sanções da comunidade internacional. Porque podem ajudar chefes de Estado cruéis a pilhar os países que estão sob o seu controlo. E porque lhes possibilitam esconder esse saque algures em empresas offshore cujas respetivas contas costumam estar sediadas na Suíça ou no Luxemburgo”

(Págs. 74 e 75 do “Panama Papers – A História de um Escândalo Mundial” (Edição Objectiva, 2016)

A opinião pública mundial está mais consciente de que é necessário combater os centros internacionais de offshore cinco meses após a divulgação dos Panamá Papers um pouco por todo o mundo?

A publicação dos ‘Panama Papers’ levou a uma discussão global sobre os paraísos fiscais e as empresas offshore. Já não vemos um debate intenso como aquele que assistimos nas semanas após a publicação dos primeiros trabalhos mas vemos um debate a nível nacional entre políticos, peritos financeiros, etc. A grande diferença face ao passado tem a ver com a forma como analisamos o tema. Tem a ver com evasão fiscal e com o branqueamento de capitais mas também, e aqui está o grande contributo dos ‘Panama Papers’, com a ocultação das receitas do crime organizado ou com a forma como regimes políticos criminosos, como o de Bashar Al Assad, contornam as sanções impostas pela comunidade internacional.

Precisamente. As Nações Unidas e a comunidade internacional estão mais preocupadas em combater esse tipo de fraude e em aumentar a eficácia das sanções internacionais?

A comunidade internacional estava bem ciente deste problema e os peritos das Nações Unidas, assim com o governo dos Estados Unidos, sabiam o que estava a acontecer nos paraísos fiscais mas não havia suficiente pressão da opinião pública. Agora estamos a ver essa pressão sobre os políticos para mudar aquele estado de coisas. Estava muito otimista após a publicação dos primeiros trabalhos mas as mudanças estão a demorar o seu tempo. Estou para ver se as palavras fortes da classe política terão consequências.

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A Europa tem vindo a perder todos anos competitividade económica para os Estados Unidos e para China, ao mesmo tempo que existe uma grande pressão financeira sobre os sistemas de saúde e de segurança social devido ao envelhecimento da população e à perda de receitas fiscais por falta de dinamismo económico. Tudo junto faz com que exista uma grande necessidade de mais receita fiscal por parte dos estados europeus. Consideras legítimo que a Europa aposte em sistemas fiscais competitivos para conseguir atrair investidores internacionais?

Não sou grande defensor dessa race to the bottom [expressão económica que significa descida competitiva dos impostos).

Os estados podem sempre baixar os impostos para serem mais competitivos mas a questão é esta: em que país queres viver? Eu não quero viver num país que tem grandes negócios registados mas em que não há dinheiro suficiente para fazer estradas ou construir escolas e hospitais. Podemos ter impostos dentro da média e termos transparência. A falta de transparência é o grande problema das nossas economias.

Por exemplo, eu sou um grande defensor da implementação de um registo internacional sobre os beneficiários últimos das sociedades offshore. Com esse instrumento podemos ver quem detém determinada empresa, entre outros bons argumentos. Os empresários que querem fugir aos impostos ou criminosos que querem esconder receitas ilegais apenas criam uma sociedade offshore por causa do segredo que lhes é assegurado. Se acabares com esse segredo, o negócio das offshore deixará de ter muitos clientes. Os políticos têm que decidir o caminho que querem seguir. Eu defendo mais transparência.

A colaboração dos jornalistas com o Estado

O teu colega Bastian Obermayer (subdiretor do “Suddeutsche Zeitung”) afirmou numa entrevista o seguinte: “Nós não somos activistas mas jornalistas. Não estamos numa batalha contra o mundo das sociedades offshore, estamos apenas a reportar o que sabemos”. A publicação de um trabalho com esta importância não tem inevitavelmente o objetivo de promover a mudança das leis que permitem o sistema que vocês denunciaram? Essa não é uma das funções do jornalismo: lutar e mudar o que está mal?

Como jornalista, o meu papel é usar a minha voz para denunciar algo está errado através de uma linguagem que todos possam perceber. Não sou um grande defensor de uma linguagem diplomática. Se algo está mal, tens de dizer que está mal através de notícias, de reportagens.

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Uma mentira é uma mentira — e como tal deve ser denunciada quando alguém falta à verdade.

Agora, mudar essa realidade, que está errada, não é o nosso papel. Esse é o papel dos políticos. Não é o nosso dever fazer parte do processo de decisão. Apenas podemos dizer que, baseado no que vimos nos ‘Panama Papers’, o segredo que é providenciado pelos centros internacional de offshore ajuda os criminosos. Os políticos têm que decidir se querem lutar para resolver este problema.

O nosso dever é reportar sobre o que esses políticos querem fazer — façam mudanças ou mantenham as coisas como estão. É para isso que serve o jornalismo.

Como explicam no vosso livro, o fisco alemão pagou cerca de um milhão de euros a um informador para ter dados da Mossack Fonseca que eram muito inferiores, em termos de quantidade e de qualidade, aos que vocês tinham. O Fisco alemão, ou qualquer outra entidade tributária, alguma vez pedido o acesso aos vossos dados? Consideram que o jornalismo tem o dever de colaborar com o seu Estado ou com a Justiça?

Como política do jornal em que trabalho, o Suddeutsche Zeintung, não cedemos ou divulgamos os documentos que obtemos às autoridades. Neste caso, existe outra questão. A nossa fonte, John Doe, continua a ser anónima e ninguém sabe quem é. Não posso garantir com 100% de certeza que a documentação que nós poderíamos providenciar não poderia levar à descoberta da identidade da nossa fonte. Isto é, se as autoridades não iriam atrás da nossa fonte, em vez de procurarem informação sobre os clientes da Mossack Fonseca e sobre a própria Mossack Fonseca. Isso seria um problema. Para nós, a proteção do John Doe é a nossa maior preocupação.

Além disso, e tendo em conta as outras experiências de outros grandes casos do ICIJ, fiquei com a impressão de que era sempre fácil aos políticos descobrir o que tinha acontecido e ter acesso à informação necessária. Há sempre uma parte importante da informação que está na mãos dos governos. Por exemplo, muita da documentação do caso Offshore Leaks já estava na posse de diversos governos europeus. O que aconteceu a esse material? Bem, não sei. Lembra-te, o caso Offshore Leaks foi em 2013 e ainda está em desenvolvimentos [nas autoridades fiscais de cada país envolvido]. Se os políticos querem mudar alguma coisa, podem começar por contratar mais investigadores para os departamentos das autoridades fiscais. Não tenho conhecimento sobre a realidade Portugal mas, na Alemanha, nós ouvimos da boca dos funcionários do fisco de que não têm meios para investigar.

Em Portugal é a mesma coisa. O vosso trabalho revela bem o envolvimento de um conjunto alargado de titulares de cargos públicos e políticos interessados em ter offshores para esconder dinheiros e bens. E não estamos só a falar de políticos africanos asiáticos mas também de europeus. Isso revela um sistema político doente. A questão resume-se a uma pergunta: em quem é que nós podemos confiar quando os políticos não querem combater os centros internacionais de offshore?

Um grande problema no passado era que o tema das fraudes fiscais promovidas pelos offshore não era visto como um problema. Os centros internacionais de paraísos fiscal também não eram igualmente um assunto sexy. E, por isso, era fácil aos políticos não tomarem o problema em mãos porque a comunicação social não olhou para o problema.

O caso dos ‘Panama Papers’ revelou, assim espero, que este é um problema que nos afeta a todos no nosso dia-a-dia. Eu diria que em todos os países há políticos que combatem os centros offshore e defendem a transparência. Os cidadãos têm a hipótese de apoiar esses políticos — é isso que devem fazer, se entendem que este é um assunto prioritário.

Temos assistido a diversos casos globais, como os que foram revelados pelo ICIJ – Internatonal Consortium of Investigative Journalists, que nasceram do esforço de algum whistleblower, como o vosso John Doe. No entanto, há países, como os Estados Unidos, que não só criminalizam os whistleblowers, como impedem que histórias nasçam do acesso não autorizado à documentação não podem ser publicadas. O que pode ser feito?

Esse também é um tema que diz respeito a todos os cidadãos. Os jornalistas têm uma especial responsabilidade em investigar estes temas e exigir ao poder político uma melhor proteção para os whistleblowers. Ao mesmo tempo, e enquanto essa legislação não estiver em vigor, devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para proteger as nossas fontes.

A melhor coisa que John Doe fez foi manter-se anónimo para o público e para os jornalistas. Eu podia ter uma pistola apontada à minha cabeça que eu não saberia revelar a identidade de John Doe. Tenho que dizer que ainda estou curioso sobre a identidade de John Doe mas a decisão de manter-se anónimo foi a melhor decisão para a sua segurança.

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Um jornalista como um agente secreto

“(…) O mundo. A nossa fuga de informação. Assad, Putin, Islândia, 500 milhões. Tudo isto é completamente absurdo. E o mais incrível é que a fonte continua a enviar-nos dados. Nunca pára.

No dia seguinte, falamos por telefone com o diretor do ICIJ, Gerard Ryle. Dizemos-lhe que os argumentos para apresentar aos nossos colegas do ICIJ são cada vez melhores. Ele fica contente, mas centra rapidamente a conversa nas questões práticas. O ICIJ enviará a Munique dois especialistas em dados. a jornalista espanhola Mar Cabra, diretora da equipa de dados do ICIJ, e Rigoberto Carvajal, da Costa Rica, o programador-chefe (…) A tarefa deles é explicar-nos como lidar com esta montanha de dados e trazer-nos um programa que nos facilitará a pesquisa. Além disso, levarão um disco externo com eles para Washigton. Encriptado, como é óbvio. Melhor dizendo: encriptado e escondido.

Eis como funciona: através de programas de encriptação, como o TrueCrypt ou o VeraCrypt — com os quais, segundo Edward Snowden, até mesmo os especialistas da Agência Nacional de Segurança (NSA) tiveram grandes dificuldades, pelo menos até há bem pouco tempo –, prepara-se um disco rígido externo de tal maneira que, à primeira vista, parece estar apenas encriptado. No entanto, na realidade, este disco rígido tem, a par da unidade visível encriptada, outra que é invisível e igualmente encriptada. Portanto, se o FBI, os serviços alfandegários ou qualquer outra entidade obrigarem o Rigoberto ou a Mar a ligar o disco externo e a desencriptar a unidade, quando lhes for pedido o utilizador e a palavra-chave, inserem apenas aquelas correspondentes à unidade visível. Assim, ficarão apenas cm algumas pastas que gravámos com uns quantos documentos que parecem secretos e importantes mas que, na verdade, não o são”.

(Págs. 89 e 90 do “Panama Papers – A História de um Escândalo Mundial” (Edição Objectiva, 2016)

O vosso trabalho assemelhou-se, em certa medida, a um trabalho de agente secreto ou ao trabalho de clandestinidade tais foram as medidas de segurança que foram obrigados a tomar. Tendo em conta que denunciaram gente poderosa a nível mundial, seja na política seja no crime organizado, alguma vez tiveram medo? Recearam pela vossa vida?

Tenho que admitir que, a dado momento da nossa investigação, tive receio devido ao número elevado de pessoas do crime organizado envolvidas nos ‘Panama Papers’ — e são pessoas com quem não queres ter problemas. Ao mesmo tempo, sabia que a Alemanha é um ambiente seguro para jornalistas de investigação. Por isso, senti-me em segurança.

E quais foram as consequências para os vossos colegas do ICIJ que trabalham em países como a Rússia ou em zonas com o Médio Oriente ou a América Latina?

Os colegas do ICIJ que trabalharam nesses áreas é que estiveram em perigo porque são ambientes perigosos para jornalistas de investigação. Os colegas russos, por exemplo, foram obrigados a sair da Rússia após a publicação dos ‘Panama Papers’ por razões de segurança. Esses colegas, juntamente com os colegas da América do Sul, África ou do Médio Orientes, arriscaram mesmo as suas vidas para publicarem as suas histórias. Por exemplo, o colega do Panamá que colaborou connosco ainda tem guarda-costas. Esta investigação mudou mesmo as vidas de todos esses jornalistas porque passaram a ser perseguidos.

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Continuam a explorar os dados que John Doe vos cedeu? É expectável esperar uma sequela dos Panama Papers – parte 2?

A investigação dos Panama Papers vai continuar nos próximos meses e até, suspeito, nos próximos anos. Tenho que admitir que talvez haja uma data no futuro em que o meu diretor decida que eu não devo trabalhar exclusivamente nos Panama Papers e devo também fazer outras investigações. Bem, o que eu devo dizer? Como eu o compreendo.

Tal como aconteceu com outros grandes casos, não posso ter a certeza se teremos mais novidades. Por exemplo, muitos dos documentos dos anos 70 estão escritos à mão e não podem ser digitalizados convenientemente para se tornarem em documentos pesquisáveis. Poderá estar o nome do Papa ou de alguém do género e nós ainda descobrimos. Continuamos a ler novos documentos todos os dias na esperança de conseguirmos descobrir outra grande história. Uma coisa é certa: a revelação dos ‘Panama Papers’ continua incompleta. Há muitas histórias que continuam a ser feitas a nível nacional, como no Togo, Moçambique, Mongolia mas que não têm uma repercussão a nível global.

Mas que têm repercussão a nível nacional de cada uma das comunidades envolvidas.

O facto de não termos publicado mais histórias enquanto equipa global não quer dizer que este projeto terminou. Significa, isso sim, que continuamos a trabalhar a nível global nos dados que temos.

Também devemos ter a noção de acontecerá no futuro. Imaginemos que um político que seja apanhado num novo escândalo. Obviamente que iremos pesquisar o nome dele na base de dados do ‘Panama Papers’ e, quem sabe?, talvez o seu nome esteja lá.