O Presidente da República revelou antes do tempo que a Fitch iria manter o rating da República Portuguesa inalterado, furando assim as regras europeias para as agências de notação de risco e as recomendações da CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários). As normas europeias dizem que a notação só pode ser divulgada após o fecho dos mercados, mas Marcelo Rebelo de Sousa — mais de três horas antes — anunciou cerca das 14h desta sexta-feira como “boa notícia” que “a agência Fitch mantém o rating de Portugal, à espera das decisões das instituições europeias”.

Ao final do dia, Marcelo justificava-se, em declarações aos jornalistas, dizendo que “os operadores já sabiam desde ontem [quinta-feira] que não ia haver novidade e limitei-me a falar desse não haver novidade. E não haver novidade era bom para Portugal”. Confrontado com a violação das regras, Marcelo justificou-se: “Como os operadores sabiam o que se ia passar, considerei positivo . O que considerei foi a expectativa que existia. E digo já que a expectativa que tenho é que também não haja novidades nas duas agências que faltam pronunciar-se.” O Presidente não reconheceu que tivesse cometido um erro e acrescentou: “A expetativa que tenho é que das duas agências que ainda não se pronunciaram não o façam antes das instituições europeias.”

Um professor de Finanças ouvido pelo Observador diz que o Presidente da República “meteu os pés pelas mãos”, num claro “incumprimento das regras ou, no mínimo, das recomendações do mercado”. O mesmo especialista diz que não há forma de a “CMVM não levantar o problema”, já que “quem tem de informar é a Fitch, ao mesmo tempo a todos e depois do fecho do mercado”. Marcelo, como todos os outros que tenham a informação previamente, “têm de ficar calados”.

“Parece-me que o Presidente da República não tem nada que comentar isto. Isto são assuntos do Governo”, diz outro professor de Finanças membro de um Governo passado. “O rating da Fitch é pago, solicitado, portanto deverá existir um contrato entre a agência de rating e o Ministério das Finanças”, sublinha o mesmo especialista, admitindo que possa haver consequências para o Ministério das Finanças porque esse contrato deverá incluir cláusulas de sigilo e embargo de informação privilegiada.

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Desde logo, a CMVM, nas regras para a divulgação de Informação Privilegiada, tem uma parte referente à informação privilegiada e sobre “que condutas devem adotar as terceiras entidades”. O primeiro especialista diz que é “limpinho” nesta regra que o Presidente não deveria ter divulgado a informação.

O que dizem as regras da CMVM?

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O entendimento da CMVM relativamente à divulgação de informação privilegiada por emitentes estabelece “que condutas devem adotar as terceiras entidades”. De acordo com o documento:

“É aconselhável que as entidades – tais como organismos públicos que produzem informações estatísticas, sociedades de notação de risco, o Governo, a autoridade responsável pelo controlo da concorrência nos mercados relevantes em que se insira o emitente e outros organismos públicos — que produzam ou divulguem informação sobre factos indiretamente relacionados com o emitente ou com os instrumentos financeiros por ele emitidos (vd supra n.º 8) adotem as seguintes condutas:

  • Restringir o conhecimento dessa informação até à sua divulgação pública;
  • Anunciar previamente os calendários de divulgação desse tipo de informação;
  • Divulgar publicamente essa informação após o encerramento dos mercados;
  • Divulgar essa informação simultaneamente a todo o público, sem prejuízo das comunicações sujeitas a sigilo que tenham de ser feitas às pessoas ou entidades relacionadas com os factos.”

Além disso, a mesma fonte destaca que — de acordo com as regras do “price sensitivity” ou qualquer informação de reserva — “como o Governo tem conhecimento prévio e está sujeito às regras, por ser visado, se as contar a outra entidade, como a Presidência da República, a entidade fica sujeita ao mesmo dever de sigilo e embargo até à divulgação.

E depois há as regras europeias. Antes da entrada em vigor das novas regras, nos primeiros tempos da crise financeira, era frequente haver alterações súbitas dos juros de um dado emitente durante a sessão, movimentos bruscos que eram explicados pelos analistas com rumores de que certa agência estaria prestes a melhorar ou cortar o rating de um dado país. Rumores que em algumas ocasiões se materializavam e em (muitas) outras não. Seja como for, era claro que existiam tentativas de manipulação dos mercados por via desses rumores.

As regras que começaram a ser aplicadas em meados de 2013 obrigam as agências a pré-agendar um conjunto de dias (sextas-feiras) ao longo do ano. Nesses dias, e após o fecho dos mercados, as agências podem aproveitar a “janela” para emitir um relatório de rating. Pode haver desvios a essas datas, mas só se forem justificados com um acontecimento imprevisto e desde que não aconteça de forma recorrente.

Governo sabe pelo menos 24 horas antes

Para diminuir a especulação financeira e assegurar que não existem investidores com informação privilegiada, o mercado só conhece a decisão após o fecho das bolsas, toda a gente à mesma hora. Contudo, os visados pelo rating, neste caso o Governo português, são informados sobre a decisão (e recebem o relatório na íntegra) com pelo menos 24 horas de antecedência, no fundo para poderem preparar a comunicação pública que pode ser necessária após uma qualquer decisão. O Ministério das Finanças fica, contudo, vinculado a um embargo que o impede de partilhar essa informação antes do tempo.

O Presidente da República poderá ter recebido a informação do primeiro-ministro, por exemplo, na reunião semanal. Não há qualquer problema nisso, desde que mantenha o sigilo. O problema está mesmo em Marcelo ter divulgado a informação previamente.

O Observador contactou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e a Presidência da República, mas até agora ainda não obteve qualquer resposta de nenhuma das entidades.

A agência Fitch, também contactada, remeteu comentários para mais tarde e mantém o calendário de publicação do rating. Já no Ministério das Finanças, a fontes oficiais estavam incontactáveis.

Esta não é a primeira vez que Marcelo revela informação sensível antes do tempo. Em abril, em apenas uma semana, o Presidente da República fê-lo por duas vezes, primeiro ao revelar a indicação de Elisa Ferreira para o Banco de Portugal e, depois, a saída de um secretário de Estado da Educação.

Reação do Presidente da República acrescentada às 00h15.