Aconteceu em maio de 2003: num assomo supostamente causado por um delírio de excitação provocado pelo consumo de cocaína, David Dempsey, 31 anos, três filhos, caiu de um segundo andar e morreu. Foi a Gordon Ramsay, seu amigo e patrão, que há apenas duas semanas o tinha feito chef principal do seu restaurante de 3 estrelas Michelin no bairro londrino de Chelsea, com um salário anual de 70 mil libras, que o médico legista pediu que reconhecesse o corpo na morgue.

No sangue, revelaram os jornais britânicos, o protegido de Ramsay tinha 1,36 miligramas de cocaína por litro de sangue. Na altura, um especialista em toxicologia no Hospital de St George explicou ao Guardian: 0,9 miligramas são suficientes para levar à morte.

Quebrei fisicamente. Não consegui passar para lá daquele vidro um tipo de quem gostava tanto. Levei anos a ultrapassar aquilo. E ele não era o meu filho, era o meu chef”, confessa agora o conhecido chef britânico em entrevista de promoção ao documentário de duas partes que fez para a ITV: “Gordon Ramsay on Cocaine”.

Que a exigência e frenesim do mundo da restauração são tais que grande parte dos que lá trabalham o fazem movidos a cocaína e álcool já se sabia — muito graças a outro chef famoso, Anthony Bourdain, que em “Cozinha Confidencial” abre o livro e conta tudo sobre o incrível mundo de “sexo, drogas e rock’n’roll” da gastronomia.

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Gordon Ramsay, que garante que o consumo da droga “está a ficar fora de controlo”, revela agora de que forma a cocaína está a “devastar o mundo”, desde as plantações de coca na Colômbia às casas de banho dos seus 31 restaurantes espalhados pelo mundo. Garante que testou todas elas em busca de vestígios da substância — e que só não os encontrou numa.

“Tornou-se no meu maior pesadelo, não para identificar quem consumia e os por fora, mas para prevenir outra desgraça. Hoje em dia toda a gente quer ser chef, há a ideia de que ser chef traz uma espécie de estatuto rock’n’roll. Toda a gente quer escrever livros de cozinha e toda a gente quer ter um programa de TV. Mas a cada 6 ou 12 meses lê-se sobre mais um caso de um chef com problemas de depressão, de abuso de álcool ou de consumo de drogas”, cita o Daily Record, a partir de uma entrevista de Ramsay à Radio Times.

Nessa conversa, o autor de programas como Pesadelos na Cozinha fala ainda sobre os clientes e aponta o dedo à indústria da restauração, que compactua com aquilo a que chama um “pequeno segredo sujo”. Com direito à descrição de episódios concretos, como o da vez em que, num jantar de beneficência, um casal lhe pediu uma cobertura especial para o último prato: “Quando a sobremesa chegou à mesa, chamaram-me e disseram-me, ‘Olhe, está toda a gente muito contente por tê-lo aqui, mas acha que pode fazer um souflé como nunca antes fez e juntar cocaína ao açúcar em pó e polvilhá-lo com ela?’. Ri-me mas nunca na vida faria algo sequer parecido. Juntei o açúcar ao souflé e caramelizei-o, para que eles não tivessem hipótese de saber se o tinha feito ou não. Pousei o souflé. Nem disse adeus. Saí pela porta traseira”, cita o Guardian.

Outro incidente, ocorrido no passado Natal, foi o que terá levado o chef, de 50 anos, a fazer o documentário, que estreia no próximo 19 de outubro, na ITV: um cliente, num dos seus restaurantes, levou o prato da mesa para a casa de banho, para poder aspirar a droga, e quando saiu pediu a um empregado que lhe trouxesse um limpo. “Foi com isto que começou todo o meu dilema sobre quão longe isto está a ir e sobre a pressão a que os restaurantes estão sujeitos por parte dos clientes”, explicou.

Na mesma entrevista, Gordon Ramsay falou ainda sobre outra droga: a heroína. E sobre o irmão, Ronnie, dependente há anos da substância, que terá sido visto pela última vez há cerca de seis meses, a atuar na rua, algures em Portugal: “As pessoas pensam que a cocaína é glamorosa — não é. Destrói vidas e tem um lado negro que raramente é falado. Assisti ao vício do meu irmão. Perdi um melhor amigo para a cocaína. Agora, que estou a lidar com o filho do David Dempsey e o estou a treinar, a ensinar e a ver crescer, penso, Deus, se ao menos o pai estivesse aqui para ver isto. Ele está a perder tanto. E a responsabilidade é minha. Não tinha de ter acontecido. Se ao menos eu me tivesse apercebido. Ele era um tipo enérgico, apaixonado…”.