M.,

Recebi a tua carta no início da semana. Já a li umas mil vezes. Já lhe conheço todas as palavras, já lhe conheço todas as letras. Fazes-me falta. A tua voz faz-me falta. Vais desculpar-me mas é a tua voz que ouço assim que a primeira guitarra rasga a sauna do coliseu. Está uma noite quente. Corrijo: isto está escaldante. Whatever you do / listen, you better wait for me, eu e tu, tão perto como o vinho e o copo.

“The system only dreams in total darkness”. “Walk it back”. “Guilty part”. Isto é música feita de distâncias. Cada álbum é um álbum, cada concerto é um concerto, cada um é como cada qual, diria o povo. Tudo é único. Tudo são clichés. O nosso amor à distância é um cliché. E a distância criou este Sleep Well Beast. A ausência fê-lo crescer.

“I’ll Still Destroy You”. Todos vibram. Arrepio. Inveja. Todos cantam tudo. Ao décimo quarto concerto em Portugal continuam como no primeiro: uns sacanas que fazem da melancolia uma raiva gritante e de cada música uma comunhão de histórias e passados mal resolvidos. E há rock, há sempre rock em cada berro triste, em cada queixume sobre Trump, em cada telemóvel roubado ao público para gravar o homevideo do ano. Rock. Há sempre rock.

Ao meu lado, um inglês grita algo incompreensível. Dois namorados beijam-se. Um italiano grava o “Secret Meeting” para a namorada. Sempre a ausência. Ou então apenas a falta de dinheiro. I had a secret meeting in the basement of my brain. É o melhor verso de sempre de uma banda, garantiste-me no nosso primeiro jantar. Esparguete negro com camarões. E depois acrescentaste mais 25 versos inigualáveis, e um leite creme a meias.

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Boxer. Duas canções. Densas, carne viva, caos calmo. Memórias-cheias-de-outono-no-pequeno-apartamento-velho-que-fizemos-nosso. É passado feito presente e este álbum está mesmo maduro. As guitarras e sintetizadores que o enchem são as vozes dissonantes de uma relação que vai durando. É avassaladora a forma como sempre souberam condensar histórias e sonhos em apenas 4 minutos, e poucos temas me tocam mais do que “Fake Empire”, que raio posso eu fazer?. Quero viver nessa história, mesmo que tudo acabe mal.

Apagam-se as luzes depois de um brutal “About Today”. Foram palmas, berros, até lágrimas nos olhos no casal que se pergunta: How close am I / To losing you? Observo-os e engulo em seco. O ambiente está seco. Palmas, berros, até vejo lágrimas nos olhos. Anseio pelo regresso da banda. Precisamos todos.

E eles voltam. Os The National voltam sempre. É o conceito do eterno retorno cantado em 5 músicas derradeiras. E o M. voltou. E cantou o “Mr. November”, como quem sofre de uma ausência sem solução mas procura redenção na fuga. E fugiu pelas bancadas, pelos camarotes. Juro-te que passou bem perto de mim. Quase que lhe toquei. “Vanderlyle Crybaby Geeks”, escreve-se no fim. Escreve-se no fim dos concertos, das cartas, do amor.

Todos saem, mas eu fico até ao fim. Sou convidado a sair por um segurança mais zeloso e vou para o bar. Peço uma garrafa de vinho. E dois copos. Espero pelo M., o do palco. Espero que ele apareça e beba um copo comigo no fim. Quero estar em Guimarães, em 2008, e viver o teu fim de concerto perfeito.

Já agora, escreve-me.

P.S. Encontrei a tua mãe ontem no banco e falou-me de um problema qualquer com o teu carro. Sinceramente, não percebi e nem deve ser nada de grave, mas sabes como ela é, está sempre cheio de minhocas na cabeça. Liga-lhe, mas é.