Um ano depois de ter tomado posse como Presidente de um país que descreveu como vítima de uma “carnificina”, Donald Trump defendeu o papel da sua administração como o motor por trás de um “novo momento americano” e deixou claro aos seus adversários políticos que está disposto a negociar, mas sem abrir mão das suas principais promessas.

“Este é o novo momento americano. Nunca houve uma altura tão boa para começar a viver o sonho americano”, disse Donald Trump, que procurou sublinhar na primeira parte do seu discurso alguns dos feitos, embalados por uma economia em crescimento e uma taxa de desemprego em decrescimento, duas tendências que herdou de Barack Obama e que tem conseguido manter. Outro ponto do seu discurso foi a reforma fiscal, voltando a referir-se a esta como “o maior corte de impostos da História americana” — o que é comprovadamente falso, por maior que ele seja.

Mas, mesmo que o Donald Trump que surgiu no Capitólio na madrugada desta quarta-feira continue a ser o homem que frequentemente utiliza meias-verdades para montar o seu castelo de cartas retórico, este não é o Donald Trump cujo primor polemicista chocou metade dos EUA e fascinou a outra metade, que acabou por elegê-lo.

O Donald Trump que subiu ao púlpito, com Paul Ryan e Mike Pence pelas costas, é mais cauteloso e contido, entregando as suas ideias a um teleponto do qual nunca foge. É este o Donald Trump que prevalece quando fala nos grandes fóruns — a exceção foi o discurso na assembleia-geral das Nações Unidas, em setembro de 2017 — e que, desta vez, tentou promover a ideia de união depois de um dos anos mais fraturantes da História da política norte-americana.

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Trump estende uma mão aos democratas, mas quer tirar com a outra

Dirigindo-se para o seu lado direito, onde se sentavam os congressistas do Partido Democrata, Donald Trump pediu: “Hoje, peço a todos nós que ponhamos as nossas diferenças de lado, que procuremos chegar a um consenso, conseguindo a união que devemos ao povo. Isto é essencial. Nós fomos eleitos para servir”.

Da parte da bancada democrata, as reações ao discurso do Presidente foram por regra frias e apenas excecionalmente tépidas. A certa altura, Donald Trump defendeu a criação de uma lei que instituísse a licença de maternidade paga — algo que já tinha defendido no ano passado, naquele púlpito — e conseguiu arrancar o primeiro aplauso da bancada democrata. Quando se apercebeu dessa novidade, Donald Trump levou as mãos à cabeça, numa reação teatral de espanto.

Donald Trump reagiu desta forma quando os democratas o aplaudiram de pé por defender uma lei que universalize as licenças de maternidade pagas

Ao longo do seu discurso de 1 hora e 20 minutos — o terceiro mais longo desde que há registo —, Donald Trump não referiu uma única vez a palavra shutdown. No entanto, era precisamente essa uma das preocupações na sua cabeça e o principal motivo para tentar uma aproximação aos democratas e a uma minoria de republicanos que, por não apoiarem a política de imigração do Presidente, provocaram um shutdown do governo federal durante três dias, terminando em 22 de janeiro. Nessa altura, os democratas aceitaram sentar-se à mesa de negociação com republicanos, mas colocaram 8 de fevereiro como a data limite para um acordo. Na ausência de um consenso, o shutdown volta.

Na raiz do diferendo, está a legalização de 1,8 milhões de dreamers, termo pelo qual são conhecidos os filhos de imigrantes ilegais que foram levados para os EUA quando ainda era menores de idade. Reafirmando as suas propostas anteriores, Donald Trump demonstrou-se disponível para conceder cidadania norte-americana a 1,8 milhões de dreamers. Mas impôs condições, entre as quais consta uma das promessas mais simbólicas — o muro na fronteira com o México —, a imposição de limites mais apertados à entrada de familiares de imigrantes e a possibilidade de deportar de forma imediata aqueles que atravessarem a fronteira clandestinamente.

“Vamos juntar-nos, pôr a política de lado, e finalmente tratar disto”, disse. Mas a reação a partir da bancada democrata foi negativa, que recebeu a proposta de Donald Trump com assobios e apupos.

Olhar o mundo com o botão nuclear nas mãos

Enquanto procura chegar a consensos dentro de casa, fora de portas Donald Trump demonstra pouca vontade de estender a mão. “Em todo o mundo, lidamos com regimes perigosos, grupos terroristas e rivais como a China ou a Rússia que desafiam os nossos interesses, a nossa economia e os nossos valores”, disse. Donald Trump olha o mundo pela via da tensão, e nessa ótica disse que “a fraqueza é o caminho mais certo para o conflito e um poder ímpar o meio certo para uma verdadeira e grande defesa”.

“Não vou repetir os erros das administrações passadas que nos levaram até esta posição muito perigosa”, disse Donald Trump sobre a relação com a Coreia do Norte

Por tudo isto, sublinhou que os EUA têm de “modernizar e reconstruir” o seu arsenal nuclear como meio de “dissuadir quaisquer atos de agressão de outras nações”. E acrescentou: “Talvez no futuro haja um momento mágico em que os países do mundo se vão juntar para eliminar as suas armas nucleares. Infelizmente, ainda não chegámos lá”.

Ainda com os olhos no mapa-mundi, Donald Trump dirigiu elogios a Israel e críticas aos proverbiais alvos: Cuba, Venezuela, Irão e Coreia do Norte. Sobre o regime de Pyongyang, tornou a apostar numa postura forte e inflexível. “Ocasiões passadas ensinaram-nos que a complacência e as concessões só levam a agressões e a provocação”, disse. “Não vou repetir os erros das administrações passadas que nos levaram até esta posição muito perigosa.”

Sobre a Rússia, um silêncio ensurdecedor

Em torno do primeiro discurso do Estado da União de Donald Trump, circulava a expectativa em torno de uma possível alusão à investigação em torno do alegado conluio da sua campanha presidencial com o Kremlin. Porém, a palavra “Rússia” surgiu apenas uma vez no discurso do Presidente dos EUA, e apenas de passagem.

Os dias que antecederam o discurso do Estado da União foram marcados por um novo desenvolvimento deste caso. Em causa, está um documento classificado — leia-se, secreto — onde estará provado que o vice-procurador-geral, Rod Rosenstein, terá autorizado que um ex-colaborador de Donald Trump fosse colocado sob investigação, apesar de não apresentar as justificações necessárias para aprovar essa medida.

Numa tentativa de demonstrar que a investigação à alegada influência russa nas eleições de 2016 assenta mais em motivações políticas do que em factos, os congressistas republicanos querem que o documento seja desclassificado e tornado público. Os democratas acreditam que ao ser tornado público, o documento pode pôr em causa o futuro da investigação ao divulgar informações no mínimo sensíveis. Porém, com a ajuda da maioria republicana, o comité para assuntos de intelligence da Câmara dos Representantes aprovou a desclassificação do documento — que aguarda agora uma decisão final do Presidente, que é quem tem o poder de divulgá-lo ou não.

Ora, se Donald Trump não tocou uma vez que fosse, nem de forma indireta, no tema “Rússia”, enquanto esteve no púlpito, o mesmo não se pode dizer quando saiu dele. No final do discurso, enquanto se encaminhava para a porta de saída, Donald Trump foi abordado por vários congressistas, que procuraram cumprimentá-lo. Entre estes, estava Jeff Duncan, republicano da Carolina do Sul, que o encorajou: “Vamos lá libertar o documento”.

Donald Trump respondeu-lhe rapidamente: “Não se preocupe. 100%”.

Em inglês e em espanhol, um novo Kennedy respondeu a Trump

Como é costume, o discurso do Estado da União do Presidente foi precedido de um representante do partido da oposição — neste caso, o Partido Democrata. Entre as fileiras azuis, o nome escolhido tem ressonâncias com o passado: Joe Kennedy III, sobrinho-neto do Presidente John F. Kennedy.

O cenário para o discurso do congressista democrata foi inédito. Ao invés de uma mensagem previamente gravada num estúdio, Joe Kennedy III falou perante uma plateia em Fall River, uma cidade do Massachusetts com uma forte tradição de imigração luso-descendente. E foi precisamente pelo facto de aquela ser uma cidade imigrantes que Joe Kennedy começou. “Estamos Fall River, Massachusetts, uma cidade construída por imigrantes. De têxteis a robots, esta é uma cidade que sabe fazer grandes coisas”, disse.

Não terá sido por acaso que logo numa fase inicial do seu discurso Joe Kennedy pegou numa ideia que até há pouco tempo era uma imagem de marca de Donald Trump. “Nós ouvimos a voz dos americanos que se sentem esquecidos”, disse o democrata, que acusou a atual administração de estar a “tornar a vida dos americanos num jogo, onde para um ganhar, outro tem de perder”.

“Um conseguimos garantir a segurança da América se cortarmos a nossa rede de segurança”, continuou. “Somos bombardeados com falsas escolhas atrás de falsas escolhas. Mineiros ou mães solteiras. Comunidades rurais ou subúrbios. As costas ou o interior. Como se um mecânico em Michigan, uma professora em Tulsa ou uma educadora de infância em Birmingham fossem rivais, em vez de vítimas de um sistema engendrado para quem está no topo”, acrescentou, para depois de rematar: “A escolha dos democratas é esta: nós escolhemos os dois”.

O discurso de Joe Kennedy foi ainda marcado por uma passagem em espanhol, língua que o congressista domina. A mensagem foi dirigida em particular para os dreamers, a quem disse: “Vocês são parte da nossa História. Vamos lutar por vocês e não vamos fugir”. Restou dizer se, nessa luta pelos 1,8 milhões de dreamers, os democratas estão dispostos a fazer o resto das vontades a Donald Trump.