“Cheguei a Lisboa contando os dias que faltavam para regressar ao Brasil.” Foi assim que João Ventura, músico brasileiro de 32 anos, descreveu os primeiros tempos na capital. O jovem que se mostrou extrovertido quando falou com o Observador num miradouro em Alfama — o bairro que é o seu favorito “no mundo” –, nem sempre foi assim. Quando chegou a Portugal, não conhecia ninguém, nunca tinha saído do Brasil e “estava sempre muito fechado”.

O músico tinha-se mudado para Lisboa para tirar um doutoramento em Artes Musicais, na Universidade Nova, e dedicava toda a atenção à vida académica. Aos poucos, começou a descobrir a heterogénea comunidade de músicos lisboeta e soltou-se. Passou a participar em concertos improvisados, em jam sessions, até que na passada segunda-feira, 7 de maio, deu por si num palco em Nova Iorque, ao lado de Madonna, no concerto surpresa que ocorreu na Met Gala. Como é que o rapaz de Aracaju foi parar a um dos eventos mais mediáticos do mundo como acompanhante musical da “lisboeta” mais popular dos últimos tempos? Por causa de uma combinação da “Insensatez”, do Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com a Sonata ao Luar, do Beethoven.

Como apareceu a música na sua vida?
Foi de forma natural. Tenho uma herança musical muito forte que vai até, pelo menos, aos tempos do meu avô. Ele foi um executivo da Philips e da Som Livre e gravou quase todos os artistas brasileiros que você pode imaginar — Vinicius de Moraes, Alceu Valença, Tom Jobim… Foi ele que descobriu o Jorge Ben Jor e o Djavan, por exemplo. Chamava-se João Melo, era um daqueles caras que dá a mão às pessoas. Tem mais de 200 composições gravadas também. Até chegou a ser diretor de bandas sonoras da Globo! Mas de um modo geral, toda a gente em minha casa tocava música. Eu (à semelhança do meu avô), fui o único a segui-la como opção de carreira.

O João toca só piano ou outros instrumentos também?
Costumo dizer que eu sou um profissional de piano, mas toco um pouco de violão, de pandeiro, canto, componho.

E essa ligação com o piano surgiu como?
Foi tudo muito natural. Quando era pequeno tinha um piano em casa e gostava de brincar com ele, nunca ninguém me mandou aprender, ia sozinho, todos os dias, para tentar tocar alguma coisa. Felizmente, nasci com um ouvido muito bom, como o meu pai, e ia apanhando músicas e tentava recriá-las. Isto tudo enquanto ainda era daquelas crianças que nem chegava aos pedais, ficava com as pernas penduradinhas. Aos poucos, acho que ia conseguindo fazer umas coisas. Dos cinco aos nove anos, mantive esta brincadeira, mas depois entrei num curso de musica erudita, com um professor local, e fiquei lá dos nove ao 15 anos. A par disso, sempre mantive um contacto muito próximo com a MPB [música popular brasileira], muito por culpa do meu avô, que me contava uma série de histórias maravilhosas.

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Mas o João também viveu uns tempos longe da música, certo?
Sim. Aos 16 anos, quando estamos naquela fase típica em que não sabemos bem o que queremos fazer da vida, decidi que não queria seguir música, porque não dava dinheiro. Comecei a pensar em outros cursos e acabei por ir parar à publicidade, muito contra a vontade do meu pai, que me dizia sempre que eu tinha “uma profissão pronta, só precisava de aperfeiçoar”. Fui largando o piano, durante a adolescência, e comecei a tocar viola e a cantar. Fui dando uns concertos e acho que hoje posso dizer que isso me fez bem, porque me colocou em contacto com o público e com todas as suas reações — os que aplaudem, os que vaiam… Toda a minha vida voltou a mudar aos 21 anos, quando estava a fazer publicidade em Salvador da Baía, mergulhei numa grande depressão. Certo dia, o meu pai veio visitar-me e disse: “A partir de hoje você vai largar a publicidade, vai fazer o exame de música, vai ser músico e vou-lhe segurar o tempo que for preciso, porque vocês nasceu para isso”.

Acabou por ir dar aulas de música, então?
Sim, mas é uma coisa que, muito honestamente, ainda não me identifico muito. Ao mesmo tempo, encaro isso como uma espécie de missão. Dou aulas num lugar longínquo, onde moram muitas pessoas com poucas condições de vida… Passei lá nove meses, antes de me mudar para cá, mas posso dizer que essa experiência mudou a minha vida, percebi que aquilo que fazia tinha um grande peso social. Estamos ali para partilhar, para dar esperança… Tinha alunos que acordavam às quatro da manhã, pegavam uma moto e faziam quilómetros e quilómetros em terras sem estrada, cheias de lama, só para aprenderem música. Além disso, também tenho dois discos gravados no Brasil, algo que nunca “explodiu” mas que me mantém próximo das minhas composições, da minha música e do meu piano. Outro projeto que tenho vindo a desenvolver é o Contraponto, que é até o tema do meu doutoramento. Basicamente, é uma espécie de sonoridade que tento desenvolver, na qual cruzo musica erudita e música popular, versões minhas que juntam Beethoven com Tom Jobim, Jacques Brel com Chopin.

[O tema que João Ventura tocou na noite em que se cruzou com Madonna]

E a sua carreira de música aqui em Lisboa, como correu?
Cheguei a Lisboa contando os dias que faltavam para regressar ao Brasil. Não conhecia ninguém e foi preciso passar quase um ano para me começar a expor mais. Hoje, posso dizer com orgulho que já conheço bastantes pessoas do meio, vários artistas, de várias partes do mundo. Aqui, há de tudo: de africanos a norte-americanos, passando por japoneses e árabes. Há uma troca muito forte.

Mas concretamente, como começou a conhecer essas pessoas?
Fui saindo muito, comecei a ir muitas vezes ao Tejo Bar, em Alfama, que é um sítio que mudou a minha vida para sempre. É um lugar incrível, que só leva umas 30 pessoas, onde vários músicos de todo o mundo se reúnem só para tocar e trocar conhecimento e influências. Soube desse bar através de uma amiga, foi ela que me falou deste sítio e lembro-me perfeitamente da primeira vez que fui lá — fiquei encantado quase imediatamente, até cheguei a tocar nesse dia (acho que foi a primeira vez que toquei em público em Portugal), meio com as mãos a tremer ainda. Foi graças a esse sítio que consegui tocar com pessoas como Mayra Andrade ou a Maria Gadú.

Qual foi o primeiro músico português com quem tocou, cá?
Curiosamente foi com o Salvador Sobral, também lá, no Tejo Bar. Ele é um sujeito maravilhosamente genial e generoso. Ele viu-me a tocar, chegou a acompanhar-me a cantar e apresentou-me a muitas pessoas. Apresentou-me ao pessoal da Fábrica do Braço de Prata (onde já toquei muitas vezes), amigos dele… Ele é que me colocou em contacto com muitas pessoas de cá, do meio musical. Depois fui conhecendo a cantora Maria João, o Mário Laginha, o Ricardo Toscano…

E como é que a Madonna entra em cena?
Foi muito natural e aconteceu também, claro, no Tejo Bar [risos]. Eu estava lá a tocar e ela apareceu. Gostou da minha música, estava a tocar uma combinação da “Insensatez”, do Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com a Sonata ao Luar, do Beethoven. Acho que ela viu que a minha junção de estilos coincidia com aquilo que ela teria de fazer na Met Gala, que também juntava o mundo fashion com um lado mais religioso.

E o convite para tocar surgiu logo nessa noite?
Não. Foi mais tarde, uma semana depois. Não mantivemos qualquer tipo de contacto até que alguém da produção dela me ligou a perguntar se eu estava afim de ir a Nova Iorque tocar com ela.

João Ventura conheceu Madonna por acaso, um bar em Alfama. Não falaram muito mas a cantora ouviu-o tocar. Uma semana depois convidou-o para tocar com ela. © Diogo Lopes/Observador

Como foi esse momento?
Foi inacreditável. Olhei para o relógio para ver se era dia das mentiras e tudo [risos]! Estava a andar na rua quando o telefone tocou. Atendi e uma rapariga explicou-me que a Madonna tinha achado a minha música interessante e queria que eu tocasse com ela. Eu aceitei logo, claro. Foi incrível. Tem essa parte do glamour e isso, eu costumo dizer que sou profissional mas também sou fã. Não posso dizer que foi normal, foi uma coisa completamente encantada. Foi uma oportunidade maravilhosa para conhecer uma pessoa que só víamos na televisão e que na vida real é tão humana, tão generosa e profissional. Alguém que tem uma carreira de 40 anos, mas que continua a ensaiar com afinco, continua a dar oportunidades a outras pessoas, a fazê-las acreditar. Ela viu-me a tocar um pouco e percebeu que havia ali qualquer coisa de especial, é muito bom ver isso reconhecido.

Depois dessa chamada tiveram ensaios cá?
Tentámos, mas não deu. Acabámos só por conversar sobre o que podíamos fazer, essas versões que eu podia construir para a apresentação dela. Os ensaios mesmo foram lá, em Nova Iorque. Fomos para lá uma semana antes do concerto, no dia 30 de abril. Tivemos muitos ensaios, foi tudo muito trabalhado e de forma profissional. Foi um concerto curto, de uns 15 minutos, mas tudo foi pensado ao pormenor, com bailarinos e tudo mais. Chegávamos à sala e já estava tudo pronto, piano afinado e tudo.

Como foi a primeira vez que se sentou ao piano, com a Madonna ao seu lado?
Vou ser muito honesto: foi um momento incrível, maravilhoso e que, curiosamente, me fez sentir muito em casa. Em nenhum momento houve nervosismos ou assim, mentalizei-me que se estava ali é porque tinha mérito para isso, estudei piano durante 20 anos na minha vida, encarei a música como trabalho, treinava cinco horas todos os dias, com o metrónomo sempre a encher o saco, a repetir a mesma passagem vezes sem conta até ficar perfeito.  Senti-me em casa porque olhava à volta e toda a gente via a música da mesma forma. Ela é uma pessoa super profissional e fez-me ver que toda a gente que estava à minha volta era aquilo em que eu acreditava.

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Decidiram em conjunto o que iam tocar?
Não, ela escolheu três músicas para apresentação, uma espécie de medley. Tocamos a “Like a Prayer”, uma canção nova que ainda não conheço o nome e a “Hallelujah” do Leonard Cohen. Já tinha as pautas todas, tudo certo para começarmos a ensaiar. Só foi preciso ir afinando uns pormenores pelo caminho. É tudo muito organizado.

Como era o dia-a-dia durante essa semana de ensaios?
Trabalhámos muito, tínhamos um ensaio grande, à tarde. Não estávamos no recinto onde aconteceu a apresentação mas noutro, igualmente fantástico.

No dia antes da apresentação, estava nervoso?
Para ser sincero, tenho de admitir que na noite anterior estava um pouco tenso, demorei a adormecer…

E no dia do espetáculo?
Fomos para lá muito cedo, para deixar tudo organizado com as roupas, foi ela que escolheu tudo. Eu só entrei na zona onde íamos atuar uns 30 minutos antes da hora. Quando chegou a altura da apresentação, sentei-me no piano e olhei à minha volta. Foi aí que percebi bem onde estava, era uma sala enorme. Montes de celebridades em todo o lado, elas tinham sido surpreendidas, ninguém sabia da atuação, foi muito difícil manter segredo, mas conseguiu-se. Na hora de começar a tocar, fechei os olhos, pus as palmas das mãos viradas para cima e comecei a mentalizar-me. Era um momento onde não podia ficar nervoso. Precisava de acertar em tudo, por isso evitei olhar muito — quando cheguei ao piano já lá estava todo o mundo. Não podia pensar tipo: “Meu Deus, a Gisele Bundchen! Meu Deus, o George Clooney!” Não podia ficar maravilhado com o glamour mas sim com a situação profissional onde me encontrava. Felizmente correu tudo bem, correu foi muito rápido. Na medida do possível, foi tranquilo. No meio disso tudo, achei muita piada, porque várias celebridades me perguntaram o que ia acontecer. Quando souberam, pessoas como o Clooney ou a Gisele desejaram-me boa sorte (mas acho que ela nem se apercebeu que eu era brasileiro [risos]).

Durante este tempo que passou com ela teve oportunidade de conversar mais informalmente?
Não, não. É tudo muito restrito e separado. Não posso dizer que ficámos muito amigos, mas foi uma sólida relação profissional. 

E quando o concerto acabou, o que aconteceu?
Nada de especial, voltei para o hotel e fui comer uma pizza com o resto da equipa. No dia seguinte, estava a regressar.

Ficou alguma porta aberta para futuras colaborações?
Sim, com certeza. Mas deixo para o destino. Espero que aconteça, mas já tenho tido tanta coisa surpreendente e maravilhosa na minha vida que nem estou a pensar em nada.