Dezenas de artistas, estudantes e membros de todas as alas políticas portuguesas juntaram-se esta quinta-feira à tarde no Largo do Camões para se manifestarem contra as políticas de imigração de Donald Trump, que já separaram milhares de famílias na fronteira entre o México e os Estados Unidos da América. O protesto “Famílias Unidas, Não Divididas”, que aconteceu tanto em Lisboa como no Porto na Praça Carlos Alberto, condena “a existência de campos de detenção junto à fronteira entre os Estados Unidos e o México, onde pelo menos duas mil crianças imigrantes estariam encarceradas sem contacto com os seus pais e famílias, desde maio deste ano” porque essa política “ofende os mais elementares princípios de humanidade”.

Créditos: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Em declarações ao Observador, José Manuel Pureza, que organizou a manifestação, explica o propósito da manifestação e como conseguiu juntar tanta gente com ideologias diferentes: “Estão em causa considerações fundamentais da humanidade. Independentemente de termos perspetivas diferentes até sobre política de imigração, o que nos trouxe a todos aqui é a repugnância de toda a estação situação, que é tão óbvia. Não há quem não tenha um sentimento de repulsa perante esta indignidade”.

Enquanto o Observador conversava com José Manuel Pureza — que convocou este protesto “através de uma primeira leva de telefonemas” que ecoou mais tarde nas redes sociais –, Donald Trump dava ordem para que as crianças imigrantes separadas dos pais na fronteira e postas em jaulas em salas iluminadas 24 horas por dia fossem reunidas com as famílias na fronteira com o México. Para o deputado do Bloco de Esquerda, este passo do presidente norte-americano só dá mais validade à manifestação em Portugal: “Donald Trump já nos habituou a dizer uma coisa num dia e no dia seguinte fazer o seu contrário. É justamente por isso que aqui estamos: este anúncio tem de ser tornar verdade”.

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Apesar de Donald Trump ter repensado a política de imigração que tinha instaurado na fronteira com o México, e de ter admitido mudá-la na quarta-feira à noite, algunas dúvidas ainda pairavam no ar. “Ainda há muita coisa para clarificar: estas famílias vão mesmo juntar-se às suas famílias ou não? E vão ser juntas no lado norte-americano da fronteira ou no lado mexicano? Vão ficar unidas aos seus familiares detidas? Nada disto é claro e precisa de ser”, questiona José Manuel Pureza.

Algumas dessas respostas ficaram mais próximas de vir à tona enquanto decorria a manifestação: o presidente do Estados Unidos esclareceu na Casa Branca que deu “ordens direitas às agências” federais para reunir as 2.300 crianças que já sofriam com a separação para se juntarem aos pais imediatamente. O anúncio de Donald Trump aconteceu ao mesmo tempo que Melania Trump, primeira-dama do país que já tinha condenado as decisões anti-imigração do marido, visitava um dos centros de detenções na fronteira.

Donald Trump dá ordem para crianças se juntarem às famílias na fronteira

“A América não é isto”, diz Isabel Moreira

José Manuel Pureza conta com “o efeito borboleta” para que esta manifestação em Lisboa e a outra no Porto tenham repercussões nas decisões que Donald Trump toma em Washington: “Mostrarmos a nossa indignação já teve frutos noutras ocasiões. E neste caso concreto, o facto de Donald Trump ter dado um primeiro sinal de estar a recuar é prova de que a indignação das pessoas não é algo inútil, bem pelo contrário. É um primeiro sinal que agora tem de ser acompanhado porque a dose de indefinição ainda é muito grande. É justamente por isso que é importante vir para a rua”, afirma um dos vice-presidentes do Bloco de Esquerda.

É isto mesmo que defende Isabel Moreira, uma das subscritoras das concentrações desta quinta-feira em Lisboa e no Porto, onde também estão António Bagão Félix ou Luaty Beirão: “É sempre uma onda contrária a esta indignidade. Temos o peso que podemos ter e fazemos o que podemos fazer, mas não ficamos calados seja em que país for, mesmo que seja os Estados Unidos da América. Até porque eu sou das que acredita que isto não é a América”. Para Isabel Moreira, Donald Trump abriu “uma era de uma América terrível, escura, um pesadelo mesmo que tem um rosto, o Trump, e que tem responsáveis, que são as pessoas que o elegeram. Mas a América não é isto”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Que estas políticas de imigração não se enquadram naquilo que é a América é também a opinião de Gonçalo Loureiro, de 20 anos, estudante de Relações Internacionais que carregava um cartaz com a mensagem: “Keep the kids, deport the racists”, que em português significa “Fiquem com as crianças, deportem os racistas”. Em conversa com o Observador, Gonçalo explica o que o levou até ao Largo do Camões em Lisboa: “Repudio o que tem acontecido aos Estados Unidos, que agora tem um presidente que não trata todas as pessoas com a mesma dignidade. Uma potência como os Estados Unidos deixa um precedente incrível para o resto do mundo e o impacto que isto tem é enorme”.

Gonçalo falava ao lado de uma amiga cujo cartaz que dizia “Hey, misters. Leave the kids alone”, uma frase que em português significa: “Senhores, deixeim as crianças em paz” e que é uma adaptação de um dos versos da revolucionária canção dos Pink Floyd: “Another Brick in The Wall”. Nem um nem outro aderiram à concentração no Largo do Camões a pensar que aqueles cartazes iriam acabar com o que tem vindo a acontecer na fronteira entre o México e os Estados Unidos. O que pretendiam fazer realmente era pressionar o governo português. “Com certeza que pressiona os Estados Unidos, mas pressiona sobretudo o governo português, que ainda não censurou os atos dos Estados Unidos como devia ter feito”.

“Um ato cruel e de flagrante violação de direitos humanos”

A última canção a sair das colunas montadas no Largo de Camões antes de a organização da concentração falar a todos os participantes foi “This Is America”, a canção de Donald Glover que, na pele de Childish Gambino, disserta sobre o debate em redor do acesso às armas nos Estados Unidos e sobre a discriminação racial no país, dois assuntos que muitas vezes andam de mãos dadas. Ainda antes do tiro da canção ser ouvido, o volume das colunas foi reduzido ao mínimo para se ouvir a intervenção dos organizadores: “A existência de campos de detenção junto à fronteira entre os Estados Unidos e o México, onde pelo menos duas mil crianças imigrantes estariam encarceradas sem contacto com os seus pais e famílias, desde maio deste ano, ofende os mais elementares princípios de humanidade”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A seguir, a leitura falava sobre as condições em que os menores são mantidos dentro de jaulas na fronteira: “As crianças, algumas apenas com seis anos de idade, terão sido propositadamente separadas dos seus pais pelas autoridades norte-americanas como forma de dissuadir os fluxos migratórios para os Estados Unidos. O próprio presidente Donald Trump confirmou publicamente que é assim. O conhecimento dos detalhes de toda esta prática só aumenta a nossa convicção de que estamos perante um ato cruel e de flagrante violação de direitos humanos. As imagens publicadas pela comunicação social norte-americana mostram centros de detenção formados por jaulas onde as crianças são colocadas a dormir no chão com um cobertor térmico. Os centros estão iluminados 24 horas por dia, igualando condições próximas da tortura”.

Pouco antes de aquela declaração estar a ser lida, “pós a separação, não existe qualquer hipótese de reunião das crianças com as suas famílias, nem de contacto ou sequer de informação sobre o paradeiro de cada membro da família”. Foi isso que levou membros influentes da sociedade portuguesa a juntarem-se a anónimos para manifestarem indignação “contra esta política desumana e indigna de qualquer sociedade civilizada e democrática, e exigimos que estas famílias sejam reunidas e livres de prosseguirem a sua vida”.

A exigência pode mesmo ter sido ouvida: Donald Trump promete juntar todas as crianças que tinham sido separadas dos pais às suas famílias. Mas desmente as notícias que dão conta das condições desumanas dos campos de detenção na fronteira: segundo ele, são  as “mais bonitas  que as pessoas já viram”,  embora admita que esta situação seja “algo que não deveria estar a acontecer”. Para Trump, as políticas de separação só foram instauradas por causa dos  democratas que, diz ele, defendem uma política “extremista” de “fronteira aberta” que criou “uma enorme indústria de contrabando infantil”.