No campeonato das estrelas pop das últimas duas décadas, ela está lá, ao lado de outros gigantes da indústria musical. Por exemplo, Taylor Swift, com quem teve, aliás, picardias públicas. Mas também Rihanna, Justin Bieber, Bruno Mars, Pharrel Williams, Beyoncé, Drake, Adele, Lady Gaga, Eminem, Kanye West, Justin Timberlake, The Weeknd ou Ed Sheeran. Uff.

Tal como estes, Katy Perry atingiu um estatuto planetário no século XXI. E no entanto, sem que haja número divulgado de venda de bilhetes, o dia da cantora (e também de Jessie J e Ivete Sangalo) no Rock in Rio Lisboa não esgotou com a antecedência com que esgotou o dia de Bruno Mars. Tal como não esgotou o dia dos Muse, por exemplo.

Será por Bruno Mars ter tido a seu favor a muleta Anitta, brasileira que se estreou em Portugal e atraiu muito público ao Parque da Bela Vista no passado domingo, 24 de junho? Ou será antes um reflexo de momentos menos fulgurantes das carreiras dos Muse e de Katy Perry, que já liderou a música pop como hoje Bruno Mars (vencedor de múltiplos Grammy, o último dos quais na categoria de Melhor Álbum) o faz?

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Não é fácil perseguir êxitos tão grandes quanto os singles “I Kissed a Girl” e “Hot n Cold”, incluídos no primeiro álbum (One of the Boys), que Katy Perry editou com esse nome artístico, em 2008. Ou êxitos tão bem sucedidos quanto os do seu segundo álbum como Katy Perry. Intitulado Teenage Dream, este foi o que mais impacto teve junto do público: tornou-se disco de platina nos Estados Unidos, vendeu mais de seis milhões de cópias em todo o mundo e tornou-se no primeiro álbum desde Bad, de Michael Jackson, a ter cinco singles na liderança do ranking Hot 100 da empresa Billboard, que revela as canções mais ouvidas semanalmente em todo o país.

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Como lembra a revista Stereogum, Teenage Dream, editado em 2010, foi mais do que “O” álbum de Katy Perry: foi um dos álbuns que mais sucesso teve na história da música americana. Superá-lo era missão quase impossível, igualar o seu impacto já seria um objetivo ambicioso.

A cantora não o conseguiu: os sucessores Prism (lançado em 2013) e Witness (editado em 2017), sobretudo o último, ficaram longe da aclamação anterior. Tão longe que Steve Barnett, presidente executivo da editora Capitol, que lançou os quatro álbuns “oficiais” de Katy Perry (em início de carreira, a cantora tinha editado um álbum homónimo como Katy Hudson, que à época, em 2001, vendeu umas modestas 200 cópias) disse ter sido obrigado “a sentar-se e a ter conversas duras com ela e com a sua equipa de management [gestão]”, porque “por mais bem sucedida que alguém tenha sido, tem de se aprender [com os erros]”.

Pessoalmente, aprendi mais com os nossos erros do que com os nossos sucessos e acredito que os nossos artistas também se encaixem nessa categoria”, concluía Steve Barnett.

É claro que a crise é relativa. Os singles mais recentes de Katy Perry rodaram nas rádios de todo o mundo até mais não e somam (muitos) milhões de visualizações no Youtube, novo canal de consumo musical por excelência. Primeiro saiu “Chained To The Rhythm”. Depois “Bon Appétit”, com a colaboração do grupo de (t)rap Migos. E houve ainda “Swish Swish”, com participação de Nicki Minaj (não falámos dela ali em cima, mas…) e “Hey Hey Hey”.

Para os padrões de, digamos, 99,9% dos músicos, a receção a estes singles e ao álbum que os inclui só poderia ser classificada como enorme sucesso. “Huge success”, para usar uma conhecida expressão de Donald Trump. Mas Katy Perry faz parte dos 0,1%, da cadeia mais alta da pop. E como nenhum destes temas chegou à liderança do tal ranking Hot 100, como o álbum estreou-se na liderança do top de vendas mas rapidamente (e surpreendentemente) desapareceu dos lugares cimeiros, o último esforço de Perry parece ter ficado àquem. Foi o mundo que mudou ou foi Katy Perry que perdeu o “killer instinct”? E será que ela se importa assim tanto com isso?

“Rendi-me. Hoje estou sóbria, amanhã não sei. Um dia de cada vez”

Durante os seus primeiros dois álbuns como Katy Perry, a californiana Katheryn Elizabeth Hudson foi incluindo um conjunto diversificado de personagens na sua persona artística. Quase sempre provocadoras, arrojadas, sexys e excêntricas, serviam os propósitos da cantora que cantava singles como “Ur So Gay” e tiradas como “I kissed a girl and I liked it”, que atuava montada num cavalo mecânico e com bailarianos vestidos de robôs fashion e que namorou com múltiplas celebridades, de John Mayer a Orlando Bloom, passando por Russell Brand. Com o último chegou a casar-se e divorciar-se, numa relação que Russell Brand terminou por sms.

Perceber a persona construída por “Katy” Hudson é essencial para perceber a sua evolução recente. Não que a californiana queira “matar” Katy Perry ou os seus grandes êxitos, mas nos últimos anos tem voltado a aproximar-se do seu “eu” original, como já apontou em diversas entrevistas. E isso reflete-se na música, mais madura mas, pelos vistos, com menor apelo popular.

Rendi-me. Sarei alguns dos problemas que tinha com a minha família, nas minhas relações. Hoje estou sóbria, mas amanhã não sei. Um dia de cada vez, não é? [Riu-se] Tudo isto de certa maneira é lindo. Construí a Katy Perry e ela era tão divertida… Ainda sou a Katy Perry e gosto muito dela, mas acima de tudo sou a Katheryn Hudson e acho que isso tem vindo a ser cada vez mais revelado à maneira que abraço quem realmente sou”, disse a cantora, em 2017, à revista Entertainment Weekly.

As relações falhadas, ter conseguido vencer um problema de abuso de álcool e o relativo insucesso (ou sucesso — depende se o termo de comparação for respetivamente o seu passado ou a carreira da maioria dos músicos) com que o disco Prism foi recebido, também ao vivo, em digressões que perderam alguma tração, foram motivos que fizeram a americana querer fazer “pop consciente” ou “pop com significado”, como chegou a dizer.

“Tinha muitas expectativas no final de 2015 e no final de 2016 que não foram cumpridas. Foi a primeira vez em muito tempo que não consegui o que queria. Acho que foi a forma que o universo encontrou para me testar, para me dizer: vamos ver se te amas verdadeiramente”, revelou, numa entrevista mais íntima que deu à sua amiga Cleo Wade, colaboradora da revista feminina Glamour. “Foi desafiante para mim, porque não tinha percebido o quanto dependia da validação dos outros. Achei que não dependia, mas quando se é um bocadinho chutada por uma montanha abaixo, percebes que a temperatura é mesmo melhor no cimo. (…) Percebi que as pessoas não se identificam com alguém que é perfeito ou que está sempre a ganhar. É impossível estares sempre sentada e empoleirada no topo da montanha”.

Trump, Clinton e o sexo

Em Prism, de 2013, os primeiros sinais de mudança ainda estavam bastante disfarçados. Mas em Witness, o último álbum, a mudança é mais evidente. É um disco que reflete muito o fim do casamento da cantora com Russell Brand e outros momentos complicados que obrigaram Katheryn Hudson a libertar-se das regras que até aqui seguia.

“Chained to the Rhythm”, o primeiro single do último álbum e um tema que seguramente vai ser ouvido no Parque da Bela Vista, por exemplo, é uma reflexão sobre o clima social e político dos Estados Unidos pós-eleições presidenciais de Trump. “Escrevi-o com a Sia e com o Max Martin, no fim do período de escrita [do álbum]. Entrei na sala em que trabalhava, mais ou menos uma semana depois das eleições, e de alguma forma eles estavam bem. Eu definitivamente não estava. Não conseguia escrever uma canção feliz e despreocupada. Não estava num lugar apropriado para o fazer. Mas também não quero estar a pregar aos outros porque essa não é a pessoa que sou. Quero dar poder às pessoas e animá-las”, revelou numa entrevista.

Katy Perry, é importante não esquecer, foi uma apoiante confessa de Hillary Clinton, e cedeu temas seus à campanha eleitoral da candidata. “Bonne Apétit”, tema mais sexualizado e com participação do grupo Migos (acusado nas redes sociais de misogenia e sexismo), causou alguma polémica entre os fãs LGBT da cantora e aqueles que queriam levar a sério a sua nova postura “consciente”. Mas, para Katy Perry, trata-se apenas de “libertação”, porque “esta não vem apenas de falar sobre política” mas também de falar sobre sexo.

Mesmo com as mudanças, o registo de Katy Perry não sofreu uma revolução total. Em palco, por exemplo, continua a preparar espetáculos espampanantes, cheios de luzes, cenários burlescos, roupas excêntricas — e muito “fogo de artifício”, para usar a expressão cunhada por Salvador Sobral para descrever o show-biz musical. Katheryn tenta conciliar o que fazia aos 20 anos com o que faz agora que entrou nos 30’s (tem 33 anos). Não é tarefa fácil.

As bases das contradições

Mais do que perdoadas, as contradições podem ser explicadas com a infância e adolescência da cantora. Katheryn cresceu numa família de pais ultrarreligiosos, ambos pastores da Igreja Pentecostal, que lhe restringiam o acesso a toda a cultura pop, considerada ofensiva dos mandamentos de Deus. Os verões eram passados em acampamentos de jovens que não diferiam muito dos campos de conversão para homossexuais que se popularizaram nos Estados Unidos.

A música era o escape: Katheryn cantava na igreja e começou a tocar aos 13 anos, quando recebeu uma guitarra de presente. Foi quando ouviu os Queen que teve uma epifania que lhe abriu os horizontes pop. Depois vieram os concertos de Madonna e de Marilyn Manson, o apelo pela subversão, o fascínio pelas melodias pop que começou quando ouviu uma amiga tocar uma cover de “You Oughta Know”, de Alanis Morissette.

O primeiro disco, meio country meio gospel, discreto mas já com impressionante ambição pop, Katheryn gravou-o em Nashville, já depois de ter saído de casa e abandonado a escola aos 17 anos para rumar a Los Angeles. Mas a pop teatral e subversiva, pastilha elástica direta ao coração dos adolescentes, era aquilo que percebeu que queria fazer quando mudou de estilo de vida.

Criei esta personagem incrível chamada Katy Perry que em grande medida sou eu, e em que consigo entrar a qualquer momento, mas criei-a para me proteger. Tinha medo que se me vissem a mim, à Katheryn Hudson (…) pensariam: isso não é glamouroso. (…) Não queria ser a Katheryn Hudson, odiava isso, era demasiado assustador para mim, portanto decidi ser outra pessoa”, contou a cantora recentemente ao jornal britânico TheGuardian.

Nos últimos anos, a cantora diz que “percebeu, depois de dez anos de sucesso com os holofotes em cima, que ser feliz é um estado para o qual tem de se trabalhar todos os dias”. O dinheiro, as casas, o estatuto e a fama são “coisas fantásticas” mas sem felicidade uma pessoa “descarrila-se”. Quando tinha 20 e poucos anos, contou numa entrevista, era tudo “muito intenso, muito extremo e de alguma forma inconsciente”. O foco da vida era a carreira, agora o objetivo é outro: “Quero elevar-me emocionalmente. Não quero continuar a estar presa aos traumas de infância. (…) Estou a preparar-me para um dia formar família mas preciso de mais alguma cirurgia de alma para não transportar [para a família que vier a formar] esses sentimentos que persistem há muito”.

Este ano [2017] tive como missão matar o meu ego, o que está a ser muito importante para a minha carreira. Mas na minha vida pessoal isso não tem funcionado exatamente assim. Se quero mesmo ter esse equilíbrio a sério, tenho de conseguir ser a Katheryn Hudson”, disse a cantora, em fevereiro passado.

“Todos nós temos tanta pose. Mostramos todos uma vida que não é real. Também sou culpada disso. Mas quando se destrói tudo isso, a sensação é muito poderosa”, apontou recentemente a cantora. Katy Perry não está (mesmo) imune de contradições: tanto diz que “as pessoas querem que seja autêntica e é isso que quero ser” como diz que “as pessoas dizem que adoram mudanças, mas na verdade odeiam-na como a porra”. A evolução e a mudança, garante, “não são fáceis”. E Katy Perry tem sofrido com isso.

A publicação online Stereogum tem uma tese para justificar a dificuldade de Katy Perry em manter a coroa no reinado pop que difere da tese da dificuldade do público em aceitar a mudança. Num artigo intitulado “Uma década de Katy Perry: A ascenção e a queda de uma pop star revestida a doces num mundo cada vez mais amargo”, Julia Gray defendia que “enquanto o estado do mundo foi-se tornado claramente mais sombrio” nos últimos anos, a postura brincalhona de Katy Perry começou a parecer gasta.

“Todos nós, que estamos atormentados pelo crescimento do fascismo em nossa costa [EUA] e fora de portas, andávamos menos interessados em contos de escapismo e mais focados em ouvir as nossas ansiedades ecoarem para nós.” É por isso, acrescenta a analista, que expressões como “Sit down, be humble”, de Kendrick Lamar e “All My Friends Are Dead”, de Lil Uzi Vert, entraram na memória musical do público, ao contrário dos versos das canções recentes de Katy Perry, que muitos não conseguem citar de memória.

Os espetáculos e o Rock in Rio

Nos concertos, contudo, quase tudo passa para segundo plano. O objetivo é fazer dos espetáculos “um banquete para os olhos” — e também para os ouvidos –, misturando os grandes êxitos do passado a algumas (não muitas) canções novas. No Rock in Rio também deverá ser assim. Das canções mais recentes, talvez se oiçam “Chained to the Rhythm”, “Bon Appétit”, “Swish Swish”, “Hey Hey Hey” e a interessante canção R&B “Tsunami”, cujo instrumental foi composto por um colaborador de Kendrick Lamar, Drake e Nicki Minaj, Mike Will Made-It.

Será curioso perceber quantos temas Katy Perry cantará do penúltimo disco, nem novo nem especialmente bem sucedido, na Bela Vista (“Roar”, seguramente; “Dark Horse”, provavelmente; e quantos mais?). Mas a cantora que no Brasil decidiu homenagear Marielle Franco (vereadora brasileira feminista brutalmente assassinada a tiro) e que disse ter um “tetravô dos Açores”, sendo por isso “um bocadinho portuguesa”, não é definitivamente a mesma que em 2009 e 2011 atuou no Campo Pequeno, nas primeiras e últimas passagens por Lisboa. O último já pedia, na altura, um palco bastante maior do que aquele em que atuou.

Já o palco que a recebe este sábado, o palco Mundo do Rock in Rio Lisboa, é mais adequado à sua pop eufórica e efusiva (ou, para usar as palavras de Katy Perry, “libertadora”). Resta saber se o público acorrerá em massa e terá as canções na ponta da língua, como aconteceria quase seguramente se o concerto acontecesse em 2013 ou 2014, ainda na ressaca dos maiores êxitos de Katheryn Hudson.

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