Com 24 anos, habituou-se a viver dividida entre duas paixões, sem grande tempo de sobra para os pequenos prazeres quotidianos do comum dos mortais. Saídas à noite, cafés com amigos, simples convívios típicos da adolescência eram um desafio para quem se habituou a despedir-se com um frequente e sentido “Tenho de ir, tenho treino”. Francisca Laia é canoísta da Seleção Nacional e do Sporting, uma das maiores promessas nacionais da modalidade e, dois meses depois de terminar o curso de medicina nos seis anos previstos, enfrenta a prova mais importante do ano: o Campeonato do Mundo de canoagem, realizado no Centro de Alto Rendimento de Montemor-o-Velho, que arrancou esta quarta-feira.

A primeira medalha internacional chegou quando ainda era menor de idade, aos 17, com o bronze no Europeu de juniores de Zagreb, na Croácia. Daí para a frente, Kika, como é conhecida entre os amigos, soma já 18 medalhas em provas de renome internacional (nove ouros, quatro pratas e cinco bronzes) e 51 em competições nacionais (16 ouros, 20 pratas e 15 bronzes).

Os últimos três pódios internacionais foram conquistados com o primeiro posto em três provas nos Jogos Universitários do último mês, disputados também em Montemor-o-Velho, servindo assim de importante preparação para os Mundiais que se avizinhavam: Francisca Laia ganhou o ouro nos 500 metros mistos numa estafeta realizada com David Varela, conquistou o K1 200 metros sozinha e juntou-se a David Tavares para arrecadar o terceiro ouro nos K2 200 metros mistos.

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Quero apostar numa final do Mundial, a minha primeira em termos absolutos. Este ano, o Mundial não nos permite participar em muitas provas devido aos horários, por isso vou apostar em poucas provas e num bom resultado”, explicava, pouco depois das conquistas universitárias, a jovem natural de Abrantes que no Mundial vai competir apenas em K4 500 metros juntamente com Teresa Portela, Joana Vasconcelos e Francisca Carvalho.

Admitindo a preferência pelas provas de tripulações “por todo o trabalho e cumplicidade que tem de haver” entre os atletas, Kika era a única atleta olímpica da comitiva portuguesa nos Jogos Universitários, mas nem por isso acusou a pressão da responsabilidade, cumprindo na totalidade as expetativas em si depositadas.

A responsabilidade da competição é, aliás, algo a que a atleta desde cedo se habituou. Confessando “não ter memória da primeira vez que entrou num barco”, de tão tenra idade que apresentava, foi em 2003 que, encorajada pelo seu pai, João Laia (treinador e canoísta que ainda compete na categoria de veteranos), se iniciou na modalidade no Clube Desportivo ‘Os Patos’, em Abrantes, sagrando-se vice-campeã nacional de velocidade, em 2008, com apenas 14 anos.

Entre 2010 e 2014 conquista por cinco vezes o Campeonato Nacional de Regatas, ao qual juntou os bronzes nos K2 500 metros no Europeu Sub-23 e em K1 nos Europeus de Juniores, em 2011 e 2012. Mas o melhor ano desportivo vira depois, em 2015: Francisca Laia conquistou a prata nos K1 200 metros na I Taça de Portugal de Regatas em Linha (primeira classificada na categoria Sub-23) e o bronze no Campeonato Nacional de Fundo de K1, mas seria no plano internacional que se viria a destacar, com o ouro no K4 200 metros na I Taça do Mundo, os bronzes no K1 200 metros no Mundial Sub-23 e K4 500 metros na I Taça do Mundo e o segundo lugar no K1 200 metros no Campeonato do Mundo Sub-23.

Tendo sido distinguida pela Federação Portuguesa de Canoagem como Atleta Feminina do Ano e nomeada pela Confederação do Desporto de Portugal para a mesma categoria,perfeição desse ano ficou à distância de 18 milésimos de segundo – o tempo que separou Francisca Laia do apuramento direto para os Jogos Olímpicos 2016, no Rio de Janeiro. Algo que a atleta portuguesa viria a garantir, já depois de trocar ‘Os Patos’ pelo Sporting, onde se tornou companheira de equipa de Emanuel Silva, uma das suas referências, e ganhou “mais visibilidade, apoios e condições” do que no clube da terra.

No Rio de Janeiro, realizou um sonho: com apenas 22 anos, marcava presença no maior evento desportivo do planeta e acumulava experiência e currículo a uma carreira em fase ascendente. A maior vitória adquirida em terras brasileiras acabou por ser a experiência acumulada que lhe permitirá encarar Tóquio 2020 – outro dos objetivos para o futuro – com outros olhos.

Mas a vida de Francisca Laia divide-se entre a água onde compete e a Universidade de Coimbra. Ou pelo menos, dividia-se, até julho – altura em que a canoísta completou os seis anos da licenciatura de Medicina –, chegando mesmo a ser reconhecida com o Prémio Asclepius-Desporto pelo Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade de Coimbra.

Conciliar os dois mundos nem sempre foi fácil, mas “é tudo uma questão de organização”. “Continuo a achar que não existe uma fórmula que obriga a ser de uma forma ou de outra. Costuma dizer-se que quantas mais coisas tivermos para fazer, melhor as fazemos, e é verdade”, explicou Francisca, acrescentando: “É tudo uma questão de organização de tempo, de gerir as coisas da melhor forma e perceber que ‘agora é para estar mais focado nisto, depois naquilo’. Acredito que toda a gente que tenha força de vontade consegue atingir os seus objetivos desde que lute por eles“.

Garantindo que vai colocar a medicina e respetiva escolha da especialidade em pausa para se dedicar a 100% à canoagem nos próximos tempos e preparar o ataque aos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, Francisca Laia é a prova viva de que os seus ideias funcionam e de que é possível conciliar um dos mais exigentes cursos superiores com inúmeros pódios em alta competição. E o segredo para o sucesso pode ser a força de vontade suficiente para transformar um “Tenho de ir, tenho treino” repetido até à exaustão num “Tenho de ir, tenho Jogos Olímpicos”. Para já, Francisca Laia tem de ir: tem os Mundiais em Montemor.