A revelação de Marvel’s Spider-Man (do estúdio Insomniac Games) aconteceu na conferência da Sony PlayStation, na E3 2016, e arrebatou o mediatismo do evento — tornou-se quase automaticamente num dos jogos mais esperados nos anos vindouros. Não era para menos: o que víamos no primeiro vídeo de apresentação correspondia à representação mais surpreendente do famoso herói criado por Stan Lee e Steve Ditko. Os personagens da Marvel vivem, como sabemos, um dos momentos mais altos de toda a sua história, já não à conta da banda-desenhada mensal, mas do verdadeiro império cinematográfico dos Marvel Studios, cujos filmes têm batido recordes de bilheteira.

Desde que o herói surgiu em 1982, na Atari 2600, que foram feitas dezenas de adaptações do Homem-Aranha a videojogos. Mas se os títulos em duas dimensões (2D), até aos anos 1990, eram sucessos da crítica e de vendas, o mesmo não aconteceu com o advento dos jogos em três dimensões (3D). Raras foram as vezes em que as incursões tridimensionais do herói aracnídeo se elevaram acima da mediania.

O mesmo destino têm vivido os jogos de super-heróis (tanto da Marvel como da sua principal rival DC), salvo algumas exceções, em especial as adaptações à linguagem da LEGO que, de forma única, conseguem captar da melhor forma o género. A outra grande exceção da última década recai na série Batman: Arkham, cuja identidade em muito se inspira este Marvel’s Spider-Man. Os novos jogos do Batman trouxeram uma abertura de mundo e liberdade de movimentos que pareciam mais naturais ao “concorrente” da Marvel.

Acredito que não fomos os únicos a sentir que as soluções encontradas pelo estúdio Rocksteady e pela Warner Bros para desenvolver os jogos modernos do Batman seriam aplicadas que nem uma luva de licra ao Homem-Aranha. Com nove anos de atraso (o primeiro Batman: Arkham foi lançado em 2009), chega finalmente ao mercado o desenvolvimento natural de um jogo do Homem-Aranha com a mesma abordagem.

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Desenvolver uma história para um personagem com a bagagem cultural e histórica do Homem-Aranha não é tarefa fácil, como nos indicou um dos seus argumentistas. Criar um enredo que seja simultaneamente reconhecível para os fãs do super-herói mas que consiga, ao mesmo tempo, contar uma história totalmente nova era um dos grandes desafios deste Marvel’s Spider-Man. E, depois de termos passado as últimas duas semanas a jogá-lo e de termos completado o jogo a 100%, percebemos que a linha narrativa acaba por ser um dos seus grandes méritos enquanto videojogo.

Sem cair na tentação de libertar quaisquer spoilers, cheguei ao fim do jogo e senti que a aura mais descontraída e quasi-humorística que os trailers de anúncio do jogo deixam vislumbrar é muito distinta do tom de todo o enredo. A mordacidade do Homem-Aranha continua presente, especialmente enquanto está em combate, mantendo-se em linha com o que todos conhecemos, desde sempre, do material original da banda-desenhada.

Mas se a linguagem contemporânea dos filmes do universo cinemático da Marvel, na era pós- Guardians of the Galaxy, dita uma necessidade clara de envolver tudo num manto de humor e paródia tangente, Marvel’s Spider-Man assume-se como um videojogo da PlayStation desta década. O tom em geral é mais adulto, mais sério, e em muitos aspetos mais negro e introspetivo.

Os criativos por detrás de Marvel’s Spider-Man sabiam que um dos pontos fulcrais para compreender este personagem é reconhecer a sua vivência e dicotomia entre Peter Parker e o seu alter-ego. Desenvolver uma boa história do Homem-Aranha é compreender que ambos os lados têm de ter problemas e tensões que se intersectem ou não, mas que nos façam sentir que não existe um sem o outro.

Marvel’s Spider-Man começa precisamente após o término do relacionamento de Peter Parker com MJ Watson. Peter, agora com 23 anos, tem o seu primeiro emprego enquanto assistente laboratorial e percebe que o malabarismo de equilibrar as necessidades reais de manter um emprego e as relações que tem colide com a sua persona heroica. Apesar de passarmos grande parte do jogo na pele de Homem-Aranha, há muito que temos de resolver controlando Peter na sua vida quotidiana, no seu trabalho e na sua vida familiar e amorosa. Depois de 2 reboots do personagem no cinema e outros tantos na banda-desenhada, é irónico sentir que esta representação do Peter Parker/Homem-Aranha de Marvel’s Spider-Man é a melhor e mais coesa das últimas duas décadas em qualquer media. É aquela que melhor humaniza o personagem e transpira os seus dilemas e “realismo” perante um universo de personagens que é naturalmente tão distante do humano comum.

O ritmo narrativo de Marvel’s Spider-Man é também ele surpreendente. A dinâmica da evolução da história e algum foreshadowing deixaram-nos com a impressão de que alguns dos desenvolvimentos estariam a ser apenas preparados para uma sequela, mas a resolução de algumas linhas paralelas de história que surgem na vida tanto de Peter como do Homem-Aranha são já aqui resolvidas.

Se o enredo é de altíssima qualidade, é na jogabilidade e nas mecânicas de combate e movimento que o personagem e o jogo brilham em toda a sua excelência. Quem conhece o herói a fundo sente que o que o distancia de tantos outros heróis é a sua agilidade e capacidades acrobáticas. Marvel’s capta e adapta esta fluidez de movimentos de forma exímia, com o personagem a desviar-se de ataques, a saltar por cima de inimigos ou a derrapar por baixo deles, a balançar-se nas teias ou a escalar paredes e tetos com a agilidade que lhe reconhecemos, na construção mental que o personagem teve ao longo da sua História.

O combate é dos momentos mais inspirados nos títulos Batman: Arkham, da companhia rival, e que serviram de base para este jogo, mas que aqui são elevados para outro patamar pela agilidade e características únicas do Homem-Aranha. Passamos grande parte do jogo a combater, mas a qualidade da ação e o amplo leque de possibilidades do que podemos fazer é tão vasto que sentimos que a satisfação das lutas consegue manter-se fresca de uma ponta à outra do jogo.

A forma como nos movimentamos pela cidade com as contorções corporais e acrobacias do personagem a baloiçar-se de teia em teia são outro dos momentos de brilhantismo visual e mecânico deste jogo. Os fãs e conhecedores profundos da banda-desenhada do Homem-Aranha vão conseguir reconhecer poses e movimentos de artistas e períodos específicos, todos integrados naturalmente na animação do herói. Animação esta que conta com centenas de movimentos distintos que se adaptam às situações em que volvemos e que, não raras vezes, nos criam algumas surpresas. Uma das nossas primeiras surpresas nesta diversidade de animação e atenção ao detalhe ocorreu enquanto baloiçávamos pelo horizonte nova-iorquino. Ao passar por uma das muitas torres de água presentes nos telhados da cidade, o super-herói largou a teia, esticou e rodou o corpo como um parafuso e atravessou a estrutura metálica da torre de um lado ao outro, numa espécie de parkour sobre-humano.

A exploração da cidade de Nova Iorque é interessante, ainda que, no aspeto da abertura do mundo, caia a única grande fragilidade de Marvel’s Spider-Man. Quando Assassin’s Creed da Ubisoft surgiu em 2007 acabou por criar os elementos do que deveria ser um jogo de ação em mundo aberto, com alegorias próprias que envolvem quase sempre encontrar pontos que revelam no mapa o que existe em cada região (ou bairros, no caso deste Marvel’s Spider-Man). Um elemento repetitivo que muitos títulos mimetizaram, e que a própria série de Assassin’s Creed retirou no último título, permitindo que esta descoberta do mapa fosse algo mais natural do que escalar um ponto alto e “desbloquear” o conhecimento de uma região.

Marvel’s Spider-Man ainda está demasiado preso a estas fundações do género e espero que, na sequela, a Insomniac consiga tornar a exploração de Nova Iorque um momento de descoberta orgânica, longe dos clichés do género. Por outro lado, percebemos também que nesta deambulam as atividades secundárias e opcionais (que são muitas, e as quais completámos todas) são muitas delas repetitivas envolvendo combate que só se vai tornando mais desafiante do meio do jogo para a frente.

Marvel’s Spiderman é o definitivo jogo de super-heróis. Com uma aprendizagem sobre o que de melhor se poderia fazer com o género e contando com a sua larga experiência em desenvolver jogos de ação de qualidade, a Insomniac Games soube criar a mais satisfatória experiência de videojogos de super-heróis. Sobrepondo-se a Batman: Arkham enquanto o patamar a seguir dentro do género e criando algo que escapa à Marvel há largos anos: um jogo que conseguisse igualar o estado de graça que vivem, em especial no grande e no pequeno ecrã.

Ricardo Correia, Rubber Chicken