Há três anos, estreava-se no futebol profissional, na segunda divisão brasileira; hoje, é um dos melhores marcadores da Premier League, a segunda transferência mais cara da história do Everton e, na passada segunda-feira, marcou os primeiros golos com a camisola do Brasil. Aos 21 anos, Richarlison de Andrade – só Richarlison no mundo do futebol – já é uma das figuras do principal campeonato europeu e conta com o português Marco Silva para o ajudar a provar que, no seu caso, a Lei de Darwin foi bem aplicada.

E a história do avançado brasileiro podia ser bem diferente, logo desde a infância. “A minha vida podia ter terminado várias vezes por estar no sítio errado à hora errada”, confessa Richarlison, para início de conversa com a revista Four Four Two.  E o sítio errado era nada mais nada menos do que o seu local de origem: a pequena terra de Vila Rubia, situada na província de Nova Venécia, a quase 800 quilómetros do Rio de Janeiro.

Onde vivia, havia muitas pessoas que consumiam droga e tinham armas, então, embora eu fosse um rapaz calmo, continuava a ser perigoso. Ofereceram-me erva várias vezes, mas, graças a Deus, nunca fumei”, recorda Richarlison, que viu muitos dos seus amigos de infância seguirem o caminho errado: “Muitos amigos meus perderam-se na droga e a maior parte deles está na prisão. Ainda falo com eles, mas tenho de estar agradecido por não ter seguido o mesmo percurso. Tinha consciência, não podia fazê-lo”.

No meio de uma infância humilde, o avançado do Everton recorda dois dias marcantes, por razões totalmente opostas: o primeiro, quando ainda era uma pequena criança, em que foi com o seu irmão apanhar a relva cortada pelo vizinho para a plantar no seu próprio quintal, construindo assim um mini campo de futebol personalizado; o segundo, já adolescente, quando teve a morte à distância de um disparo.

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“No dia em que um homem me apontou uma arma à cabeça, ele pensava que eu era um traficante e lhe estava a tentar roubar o ponto de distribuição. Fiquei muito assustado. Só pensava: ‘Se ele dispara, eu morro’ – mas sobrevivi e segui em frente”, conta, espelhando uma crua realidade das favelas brasileiras, onde jovens lutam diariamente para não seguirem um caminho de vida descendente e encontram no futebol a melhor (e, por vezes, única) forma de subir na vida e sair do bairro.

Richarlison é daquelas histórias que tinha tudo para acabar cedo e mal, mas que parece estar no caminho certo para durar e de que maneira. Um pouco à imagem de Gabriel Jesus, avançado do Manchester City que cresceu não muito longe de Vila Rubia. Ele, tal como Richarlison, começou a dar os primeiros toques na bola no Futebol de Varzea, uma espécie de liga amadora do Brasil, onde jovens estrelas despontam e dão nas vistas antes de serem agarrados pelos grandes clubes sul-americanos.

Aí, nos campos de terra batida, muitas vezes a jogar descalço, Richarlison aplicou a Lei de Darwin, a da seleção natural. Segundo o cientista inglês, só os mais fortes se adaptam, sobrevivem e deixam legado, perante as condições em que se encontram. O brasileiro pegou nas circunstâncias da vida e mostrou ser um sobrevivente, capaz de melhorar a sua técnica em campos onde o controlo de bola é difícil e de desenvolver o seu físico perante duelos de rua mais intensos. O brasileiro pegou em tudo o que podia correr mal, sobreviveu e fez com que a vida jogasse a seu favor.

Vendeu gelados e doces na rua, antes de ir lavar carros para amealhar dinheiro para a família, sustentada pela mãe com 52 euros a cada duas semanas. De manhã, trabalhava, antes de ir à escola, à tarde, e jogar à bola com o avô, ao final do dia. Foi assim, até aos 16 anos, quando teve a primeira oportunidade de fazer testes em dois clubes do sul de Florianopolis, mas acabou rejeitado por ambos; seguiram-se testes com o Figueirense e com o Avaí, da primeira divisão brasileira, mas o não manteve-se.

Lembra-se da máxima em que só os mais fortes sobrevivem? Pois é, Richarlison não desistiu daquele que tinha decidido ser o seu caminho e foi até ao Real Noroeste, clube amador do seu estado local, onde foi aceite na equipa Sub-17. Não era a melhor opção, mas já era algo; e, para quem sabe onde quer chegar, qualquer sítio é o ideal para começar. 

“Desta vez, vai correr tudo bem”, confidenciava-lhe o seu tio. E não é que estava certo? Depois de dois anos nos escalões Sub-17 e Sub-20, em 2015, surgiu a hipótese de rumar à Serie B do Brasil, ao modesto America Mineiro. Mas nem tudo eram rosas: “O clube deu-me dinheiro para comprar bilhete de ida e de regresso, mas estava com fome, gastei o dinheiro do bilhete de regresso em comida e fui só com o de ida. Tinha de ter sucesso.”

Talvez a inexistência de um bilhete de regresso a casa tenha conferido a motivação extra que Richarlison precisava para brilhar. Ou talvez o seu talento não precisasse de qualquer incentivo para dar nas vistas. A verdade é que o jovem convenceu os responsáveis do America Mineiro e, no espaço de cinco meses, já jogava na equipa principal dos mineirenses. Foram 24 jogos numa época, nove golos e um papel preponderante na conquista do título de campeão da Serie B. Resultado: mais um patamar subido e uma mudança para o histórico Fluminense ao virar da esquina.

No gigante tricolor, Richarlison assinou 19 golos em 67 encontros divididos por duas épocas. Registo mais do que suficiente para chamar a atenção dos clubes europeus, mas não só. No final de 2017, o brasileiro esteve quase a trocar o Fluminense pelo rival Palmeiras, mas o negócio caiu por terra devido a divergências entre os clubes. Foi a sorte do avançado, que viu abrirem-se as portas do velho continente: o icónico Ajax e o não tão grande Watford chamavam por si; Richarlison surpreendeu tudo e todos ao escolher o clube inglês.

No Watford, Richarlison encontrou Marco Silva e apontou cinco golos nas 12 primeiras jornadas; até ao final do campeonato, não mais marcou (Créditos: Getty Images)

E é aqui que começa uma relação com contornos parentais. “A negociação com o Ajax estava bem adiantada. Foi bom quando o Watford surgiu. O Marco Silva telefonou-me e disse que me queria no clube, pois viu-me a jogar no Fluminense e sabia que eu tinha potencial para singrar na Premier League. A partir daí, mudei de idais e fui para Inglaterra”, conta o brasileiro.

A chegada à Premier Leage foi tudo menos discreta, com Richarlison a apontar cinco golos nas primeiras 12 jornadas. Um registo promissor, não fossem esses os únicos golos apontados pelo avançado na temporada. É que, a meio da época, os resultados da equipa começaram a cair e Marco Silva foi despedido, levando consigo as boas exibições do seu pupilo.

Seria o primeiro encontro entre o técnico português e o avançado brasileiro, mas estava longe de ser o último. Em Watford, para além de Marco Silva, Richarlison encontrou o compatriota Gomes, guardião do clube inglês. Dadas as dificuldades com o idioma, a ajuda do guarda-redes foi vital. “Tem ajudado muito na adaptação. Arranjou-me carro e casa e, além de me ter apresentado uma professora de inglês, ainda me ajuda como tradutor”, explica.

A relação entre jogador e treinador é próxima e o brasileiro não a esconde. “Marco Silva tornou-se um pai para mim”, admite (Créditos: Getty Images)

Já a relação com Marco Silva é mais forte. Tanto, que foi batizado pelos adeptos do Watford de ‘o soldado de Silva’ e o português não sabe passar sem ele: mal chegou ao Everton, fez tudo para contar com os seus serviços novamente. “É muito importante estar com o Marco Silva outra vez. Ele tornou-se um pai para mim. É jovem e conversa muito com os jogadores, explica como quer que joguemos. Com o tempo será um dos melhores do mundo, não tenho dúvidas. Ajuda-me a entender tudo o que quer”, confessou Richarlison, depois de assinar pela equipa de Liverpool a troco de 45 milhões de euros. 

No Everton, leva três jogos em igual número de partidas e a parceria com Marco Silva parece continuar a dar frutos. Ainda assim, Richarlison não esquece as origens nem o que passou para chegar onde se encontra. “Quando vejo os jogadores que estou a defrontar, hoje em dia, lembro-me que há pouco tempo estava a bater bolas na cidade onde nasci e agora estou a jogar contra o Aguero, o De Bruyne e outros melhores do mundo. É uma honra muito grande”, desabafa.

Quando questionado sobre se poderá acusar a pressão de ser a segunda transferência mais cara do Everton, não hesita em recusar a hipótese. Richarlison sobreviveu ao bairro onde viveu, a uma arma apontada à cabeça e à Lei de Darwin aplicada no Futebol de Varzea, de onde só saem os mais aptos — não seria a pressão financeira a deitar abaixo quem tanto passou para chegar ao topo.