Estávamos em 2014, era verão, e Nadia Murad era apenas uma jovem Yazidi de 21 anos que sonhava ser cabeleireira, quando toda a sua vida mudou. Num dia quente de agosto, a sua aldeia de Kojo, no Iraque, foi invadida por um grupo armado, que trazia bandeiras negras com letras brancas. Os soldados do Estado Islâmico não tiveram piedade perante as aldeias onde viviam os Yazidis, considerados “infiéis” pelo grupo terrorista: mataram os homens e as mulheres mais velhas e tornaram os rapazes crianças-soldado e as mulheres e raparigas jovens em escravas sexuais. Nadia foi uma delas.

Seis membros da sua família foram executados, incluindo a mãe — cujo corpo acabaria por ser encontrado mais tarde numa vala comum. Nadia foi levada num autocarro juntamente com mais de outras 100 jovens para Mossul, onde foram fechadas num edifício com outras centenas de mulheres Yazidi, trazidas de outras aldeias. Na noite seguinte, teria início o terror.

“Na noite seguinte um grupo de militantes do Daesh veio à casa. As mulheres começaram a gritar desesperadas. Algumas desmaiaram. Cada guerrilheiro escolheu uma rapariga. Algumas eram bem mais novas do que eu, tinham entre dez e 12 anos. As raparigas tentaram resistir, mas foram obrigadas a ir com os homens. As mais novas agarravam-se às mais velhas a chorar. O homem que me escolheu era enorme, um monstro. Estava petrificada de medo. Levou-me para o andar de baixo. Eu não parava de chorar. Disse-lhe que era demasiado jovem para ele, mas pegou em mim. Deu-me pontapés e espancou-me.”

O relato dessa primeira de muitas noites de terror foi feito pela própria ao jornal Expresso, em 2016 — ano em que Nadia recebeu o Prémio Sakharov de direitos humanos, entregue pelo Parlamento Europeu, a par de Lamiya Aji Bashar. A decisão foi tomada para homenagear as duas Yazidis por terem denunciado publicamente a violência sexual a que foram sujeitas por membros do Estado Islâmico.

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Agora, dois anos mais tarde, Nadia é escolhida para receber o Prémio Nobel da Paz, tornando-se a segunda laureada mais jovem de sempre, aos 25 anos (Malala Yousafzai foi a mais nova, com 17 anos). A denúncia sistemática que tem feito dos abusos a que a minoria Yazidi, uma das mais antigas do Iraque, foi sujeita pelo Estado Islâmico valeu-lhe várias distinções, como a nomeação de Embaixadora da Boa-Vontade da ONU para a Dignidade das Pessoas Vítimas de Tráfico. A sua campanha incessante, alertando para o calvário daquela minoria religiosa, contou com a ajuda da advogada Amal Clooney, o que lhe deu ainda mais visibilidade, e trouxe frutos: as Nações Unidas acabaram por pedir à comunidade internacional que “reconheça o genocídio cometido pelo EI contra os Yazidis e que adote as medidas necessárias para levar o caso à Justiça”. Nadia gostaria de ver esse crime julgado no Tribunal Penal Internacional, por considerar — como a ONU — que há provas suficientes para sustentar a acusação de genocídio.

Nadia Murad na cerimónia de atribuição do Prémio Sakharov (FREDERICK FLORIN/AFP/Getty Images)

Mas foi o relato cru e duro de Nadia, de rosto descoberto, sobre a violência sexual a que foi sujeita, que lhe valeu o galardão de Oslo. Na sua nota a propósito da atribuição do prémio, o Comité do Nobel destacou as cerca de três mil mulheres que terão sido violadas repetidamente por membros do Estado Islâmico, num tipo de abuso “sistemático” e parte de “uma estratégia militar”, tornando estas mulheres numa “arma usada na luta contra os Yazidis e outras minorias religiosas”. Atualmente, mais de 100 mil Yazidis vivem fora do Iraque e muitos outros são deslocados internos no Curdistão iraquiano.

Nadia Murad tem contado e recontado a tortura de que foi vítima em várias entrevistas, bem como no seu livro “Eu Serei a Última” (Objectiva). As filas de mulheres, alinhadas, para serem vendidas como mercadoria. Os homens que esfregavam as suas longas barbas nos rostos das raparigas — muitas delas crianças — enquanto as selecionavam como carne no talho, para lhes servirem de escravas sexuais. As queimaduras de cigarro que lhes deixavam na pele, para as torturar. As violações sexuais, diárias. Foram semanas de cativeiro em que Nadia esteve sujeita a estas e outras humilhações. Tentou fugir uma primeira vez, mas foi recapturada. O castigo foi ser fechada numa sala, despida e violada em grupo, por vários homens, até desmaiar. Os membros do EI chamaram à prática “Jihad sexual”.

Algum tempo depois, Nadia tentou fugir uma segunda vez. O homem com quem tinha sido forçada a viver saiu de casa, para ir comprar roupa e maquilhagem para Nadia já que, como lhe disse, ele a tinha vendido a outro homem. A jovem aproveitou o momento: fugiu e bateu à porta dos vizinhos, habitantes de Mossul sem ligações ao Daesh. A família ajudou-a, escondendo-a em casa durante 17 dias e depois ajudando-a a fugir para se reunir com o irmão do outro lado da fronteira, em Kirkuk.

No dia seguinte, já num campo de refugiados, conheceu a jornalista da BBC Nafiseh Kohnavard, e deu-lhe uma entrevista, contando-lhe o horror a que tinha sido sujeita. Esse momento foi recordado pela jornalista esta sexta-feira, pouco depois do anúncio da atribuição do Nobel: “Conheci Nadia Murad um dia depois de ela ter conseguido fugir de Mosul. Disse-lhe que podíamos fazer a entrevista mantendo-a anónima, mas ela recusou. ‘Não, deixem que o mundo veja o que nos aconteceu’, disse ela. Agora, é galardoada com o Nobel da Paz.”

Do campo de refugiados, Nadia conseguiu chegar à Alemanha, através de um programa de asilo para Yazidis. Desde então, tornou-se porta-voz da minoria religiosa, dando discurso atrás de discurso e entrevista atrás de entrevista, recontando tudo a que foi sujeita, sempre de rosto descoberto — uma atitude “de grande coragem” para o Comité de Oslo, já que provou que Nadia sempre se recusou “a aceitar os códigos sociais que exigem às mulheres que fiquem em silêncio e envergonhadas pelos abusos a que foram sujeitas”. “É claro que não estou confortável quando falo destas coisas”, admitiu a própria numa entrevista no ano passado, ao Christian Science Monitor.

“Não estou feliz por ter de falar todos os dias em frente às câmaras e ter jornalistas a perguntarem-me sobre como fui violada. A violação no Médio Oriente é uma coisa que traz muita vergonha. Penso nisto à noite, em tudo o que disse e em como me senti.”

É o preço que Nadia decidiu pagar ao tornar-se porta-voz das denúncias do massacre religioso a que os Yazidis foram sujeitos. Na sua comunidade, é vista como uma estrela: “Adoro-a tanto, espero que ela um dia se torne Presidente do Iraque”, declarou, por exemplo, um deslocado Yazidi à Economist, num campo de refugiados, em março do ano passado.

O terror pelo qual Nadia teve de passar, contudo, pesa-lhe sobre os ombros, como uma assombração. “Sinto que cada parte de mim mudou nas mãos deles: cada meada de cabelo na minha cabeça, cada parte do meu sangue, ficaram velhos. Fiquei gasta graças ao que eles me fizeram e agora sou completamente diferente do que era”, partilhou numa entrevista à Vice, em 2016. Talvez por isso, questionada sobre a possibilidade de vir a receber o Prémio Nobel da Paz — já nesse ano corria o rumor de que poderia estar na short-list —, Nadia foi absolutamente sincera: “Sei que para muita gente, ser nomeada para o Nobel da Paz seria uma coisa muito boa. E é claro que ajudaria a minha causa, a de conseguir libertar aqueles que ainda estão em cativeiro”, reconheceu. “Mas mesmo que eu eu receba o Nobel, recebê-lo-ei com o coração partido.” Por ela, por todos os Yazidis e por todas as mulheres violadas, violentadas e humilhadas, usadas como peões nas guerras dos homens.